12.1.1997 | por Valmir Santos
Diário de Mogi – Domingo, 12 de janeiro de 1997. Caderno A – 4
Cenógrafo e diretor conta histórias e dá verdadeira aula de teatro em “A Mochila do Mascate”
VALMIR SANTOS
São Paulo – Quem assistiu ao filme “Sábado”, de Ugo Giorgetti, lembra do defunto que dividia o elevador enguiçado com os tipos hilários de Tom Zé, André Abujamra e Otávio Augusto. Gianni Ratto amou o papel do velhinho nazista, cujo corpo era equilibrado de mão em mão no espaço exíguo. Ele confessa que prefere ficar “do lado de cá”. Detesta atuar diante das câmeras ou no palco porque não consegue decorar. Santo paradoxo! O homem de “A Mochila do Mascate” não tem nada de pálido e mudo. O livro de memórias revela a atitude quixotesca adotada na vida e no teatro, desde os tempos da Itália, onde nasceu, até sua chegada ao Brasil, em 1954.
Gianni Ratto viajou de Gênova ao Rio de Janeiro, 14 dias de navio. Veio a convite da companhia de Maria Della Costa e seu marido Sandro Polloni. Já trazia consigo a caixa de papelão forrada de lona marrom: a mochila, hoje bastante surrada, na qual guardaria tudo que pudesse materializar suas lembranças.
A bagagem da experiência também era invejável. Na formação de Ratto, constava encontros com verdadeiros monstros sagrados da história do teatro Ocidental, como os cenógrafos Gordon Craig e Josef Svoboda, o ator Jean-Louis Barrault e a soprano Maria Callas, sem contar o casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.
Depois de trabalhar com Maria Della Costa, foi para o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), também em São Paulo, integrando o time de diretores italianos que se revezaram na casa (Adolfo Celi, Ruggero Jaccobi etc). Dirigiu verdadeiras divas, como Cacilda Becker, Bibi Ferreira e Dercy Gonçalves, a cada qual dedica um trecho em seu livro.
Muitos o consideram ranzinza, conservador. Mas quem disse que a condição de artista maior é lá muito confortável? Gianni Ratto é um intransigente, sim. Desde que abraçado à ética humana, fazendo-a transitar dentro e fora do palco, não arreda pé. Ao abrir sua “mochila”, não faz concessões. Do pai que trata como “canalha” (abandonou a mãe quando ele era criança) até a cutucada em atores e público em geral – um caça e outro adora aplaudir (“ninguém mais vaia”, lamenta), a postura crítica é uma constante.
Aos 80 anos, o próprio não compactua com o incenso comum de jovens diante dos mais velhos. Acredita que o acúmulo de experiências ajuda, mas a efervescência criativa em moços e moças constitui fato relevante – para alegria dos detratores. Não concebe um espetáculo sem “beleza formal” – atenção maior ao espaço cênico e à interpretação que reverencie a palavra, a poesia.
O que se depreende de “A Mochila do Mascate” é a força e o esmero com que Gianni Ratto lida com a chamada carpintaria teatral. Em certa passagem, diz que se reunisse todas as madeiras dos cenários que já criou, daria para montar uma cidade. Além da visão excepcional de cenógrafo, tem o privilégio de dirigir. O domínio total lhe permite flutuações como a comédia ligeira “As Bruxas” e o recente drama “Morus e o Carrasco”. Naquela comandou atrizes globais, em montagem convencional, enquanto nesta acentuou sua preocupação estética com o espaço cênico.
Entre os principais trabalhos de Ratto, alguns integrando a parte iconográfica do livro de memórias, estão: “A Tempestade”, de Shakespeare; “A Moratória”, de Jorge Andrade; “O Santo e a Porca”, de Ariano Suassuna; e “O Mambembe”, de Álvares Azevedo.
Relatos pessoais, centrados principalmente na delicada relação com a mãe e na marcante passagem de sete anos pelo exército italiano (herdou daí o rigor pela disciplina), tendo deserdado na Grécia (coincidentemente (?) o berço da arte de representar) vão se misturando ao teatro do passado, do presente e do futuro. “Às vezes dá-se uma certa confusão em minha cabeça e o que mais lúcido, mais claro revela-se aos olhos e ao pensamento é o que mais longe no tempo está”, afirma.
E as suas histórias são costuradas assim, sem uma evolução cronológica. Como nua conversa de roda, onde o mais velho ganha voz. Tem-se o perfil humano e o artístico, numa verdadeira aula magna de teatro. O texto, escrito sem intervenção de um “ghost writer”, é cruel e denso.
Em alguns momentos, carece de menos rebuscagem. Mas até aí, ao lidar com a palavra escrita, Gianni Ratto é transparente demais. Enquanto empunhar sua espada, a vida (“Não tenho, nem nunca tiver medo da mortem, da minha morte”), esse Dom Quixote do teatro brasileiro não desistirá da batalha no mercado de sonhos, pois sua mercadoria é de primeira.