5.4.1998 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 05 de abril de 1998. Caderno A – 4
Companhia carioca trata erotismo com poesia e vê o corpo como veículo de prazer e afeto
VALMIR SANTOS
São Paulo – Como falar em erotismo nesse prenúncio de milênio? Como falar de toque, tocando, num tempo em que as pessoas optam pelo sexo on linee e erguem muros em volta de si? São questões assim, pertinentes, que vão pela cabeça do espectador depois da sessão de “Volúpia”. A montagem da carioca Cia. Teatro do Movimento resgata o elo com o corpo enquanto instrumento de prazer. E o faz, é claro, enfrentando o falso moralismo que insiste em desprezar o que Deus lhe deu.
Afinal, “Deus não me fez até a cintura para o diabo fazer o resto”, como deduz uma das personagens, numa das citações brilhantes que pululam no espetáculo. O roteiro reúne trechos de obras de Adélia Prado, Hilda Hilst, James Joyce, Anaís Nin, Henry Miller, D. H. Lawrence, Sade, Verlaine, Cortázar, Moravia e outros nomes da literatura e do pensamento mundial que colocaram o sexo na pauta do dia e nem por isso o pintou com a tinta da publicidade que a tudo consome.
O objeto do desejo, aqui, é o corpo como veículo. O corpo “humilde”, despido de conceitos, idéias e couraças afins. “A indecência no cérebro se torna obscena”, avisa um personagem. “A castidade no cérebro é vício”, retruca um outro. E a língua passeia por aí afora, retratando o erotismo desde a mitologia grega até a filosofia moderna, sob o prisma da obscenidade e da pornografia.
Há espaço para tudo no jogo de palavras, gestos e movimentos: o lúdico, o escatológico, o onírico, o fantástico, enfim, variantes que dizem respeito à intimidade de cada um. O gozo é livre e honesto – eis uma bandeira possível para “Volúpia”.
Como em “A Lua Que Me Instrua” (1992), a diretora Ana Kfouri recorre à sensibilidade para ganhar o público. Mesmo nas passagens que poderiam fazer corar muita gente – palavrões, relações homossexuais, e sadomasoquistas, por exemplo -, tudo é conduzido com a “mão” do afeto sincero, da permissão para o encontro do outro (que também pode estar dentro de si).
Dispensando a narrativa linear, os quadros são entremeados por breves blecautes. Os atores da Cia. Teatral do Movimento cometem verdadeiros contorcionismos. Como o próprio nome diz, uma perspectiva coreográfica domina a movimentação e chega a desembocar em canções entoadas pelo próprio elenco.
Heitor Martinez Mello, Isabel Cavalcanti, Manilha Martins, Nadya Thalji e Pedro Brício dão atenção em dobro ao seu principal instrumento de trabalho: o corpo. Eles interagem com os contornos geométricos do cenário (orifícios, frestras) e redimensionam o olhar voyeur e pornô. Os figurinos – sim, eles existem! – foram inspirados na sensualidade das telas do pintor austríaco Klint.
Quando os atores simulam transas em cada espaço do cenário, explorando posições variadas, protagonizam um verdadeiro “Kama Sutra”. As imagens não chocam, mais uma vez, por causa do tratamento estético que não abre mão da poesia.
“Volúpia” é uma resposta à sociedade sexista de consumo. Dá um banho de interpretação nas montagens chínfrins que ainda insistem na gratuidade do nu como chamariz de bilheteria. Nos seus breves e consistentes sete anos, a Cia. Teatral do Movimento e sua diretora conquistaram lugar ao sol com muito suor e pesquisa. E, é claro, muita coragem.
Volúpia – Concepção e direção: Ana Kfouri. Assessoria técnica: Leonardo Sá. Com Cia. Teatral do Movimento. Figurino: Charles Moeller. Cenário: Afonso Tostes, André Costa e Sônia Barreto. Quinta a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Jardel Filho (rua Vergueiro, 1.000, Paraíso, tel. 277-3611). R$ 12,00. Duração: 60 minutos.
Espetáculo ri da incomunicabilidade
São Paulo – A surpresa começa já no espaço em que o espetáculo é encenado: uma piscina. Vazia e coberta, é lá que tudo se passa. E as surpresas continuam, depois, pontuando do início ao fim. “Ladrões de Metáfora (Não Importa o que Eu Falar, Você Entende o que Quiser)” poderia dizer tudo com este título quilométrico. Mas a montagem diz e diverte muito mais.
O diretor Gustavo Kurlat – nome associado à música para teatro desde o final dos anos 80, trabalhando principalmente com o Tapa – mostra que realmente é bom de ouvido. As 22 cenas que escreveu são pequenas criações em que a sonoridade da palavra soma com o silêncio e dá em diálogos impagáveis.
É como se o espírito de Wood Allen baixasse na piscina d’A Casa, um dos novos espaços culturais da Capital. Com texto, direção e música em suas mãos, Kurlat tem pleno domínio lo espetáculo. Tomando como erferência a máxima de Ítalo Calvino de que “quem comanda o discurso é o ouvido”, ele desenvolve um amargo, ainda que cômico, inventário da incomunicabilidade.
Kurlat traça um painel das relações em todos os seus níveis: afetivo, familiar, amizade ou simplesmente individual, enquanto ser social. São personagens desnorteados, com seus pensamentos e códigos receptivos turvados pela poluição de idéias – para ficar no ramerrão semiótico que também tem lá sua surdez implícita.
De volta ao espetáculo, são esquetes ou performances nas quais o poder de síntese é exigido o tempo todo. Os quatro atores – Flávia Ferraz, Fábio Herford, Alexandre Edelstein e Vera Ferreira – dão conta do recado com muita inventividade: quer no tom predominante de farsa, quer nas cenas dramáticas que beiram o dramalhão. (Vale lembrar, o imaginário brasileiro está impregnado das telenovelas). Herford e Flávia, em especial, destacam-se também pela interpretação musical em números solos, provando que o talento de ambos se estende às cordas vocais.
Em certos momentos, a peça é um exercício de pura ironia. Como no quadro em que um homem e uma mulher, cada qual em sua vez, choram as pitangas na mesa de um bar. Nesses “intervalos” dramáticos, porém, a montagem titubeia e deixa escapar seu ritmo ideal – que é o do instalar dos dedos, estímulo e resposta, mesmo quando não se ouve um pio.
Mas o grande barato está no inusitado das situações – e de como elas são solucionadas. Do corte de cabelo que dura 15 segundos (a cabeleireira corta dois dedos do cliente, literalmente), ao tapa na cabeça do sujeito que pede para o fotógrafo bater a foto; das reticências infinitesimais que distanciam o casal em crise, à verborragia de boteco empregada pelos bêbados; do “portunhol” entre um galanteador argentino e uma moça brasileira, ao quiprocó semântico no qual maridos entediados explicam para suas mulheres o que vem a ser exatamente “impedimento” no futebol; enfim, é um desfile bem acabado da impossibilidade de se fazer entender diante do outro.
E mesmo quando o que se ouve do interlocutor entra por um ouvido e sai pelo outro, Kurlat insiste que é impossível que nada se assimile.
O ruído na comunicação interpessoal, como conseqüência da demanda tecnológica que avança a la Jetsons, está na ordem do dia. Em sua síncope litero-sonoro-gestual, o diretor e seus ótimos atores nos fazem rir do ridículo e da desgraça em que estamos embrenhados a cada celular que toca, bip que vibra ou e-mail que chega. Paradoxalmente, é refletindo e fazendo blague do distanciamento que “Ladrões de Metáforas” celebra a sua comunhão, o seu encontro com o público. Dá seu toque numa boa, sem meta-metáfora.
Ladrões de Metáforas (Não Importa o que Eu Quiser) – De Gustavo Kurlat. Figurinos: Isabela Teles. Terça e quarta, 21h30. A Casa (rua Coronel Irlandino Sandoval, 425, Pinheiros – altura do 1.754 da avenida Faria Lima, tel. 814-9711). R$ 15,00. Duração: 70 minutos. Até 6 de maio.