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O Diário de Mogi

“Angels” expõe urgência da humanidade

20.7.1995  |  por Valmir Santos

 

O Diário de Mogi – Quinta-feira, 20 de julho de 1995.   Caderno A – capa

 

 

“O Milênio Se Aproxima”, primeira parte da peça de Tony Kushner, ganha montagem brasileira pulsante e com ótimo elenco
 

 

VALMIR SANTOS

A urgência dos tempos que correm assusta. Da macro política ao pleno exercício da sexualidade, desmancham-se as certezas, os tabus. Na periferia socialista ou no primeiro mundo capitalista, seres humanos mergulham em (des)crenças.
 

Pode ser a síndrome do fim de século que se abate sobre a humanidade a cada virada de milênio. Mas o chão é aqui, no presente. Fim da Guerra Fria, Muro de Berlim, anos 80 “despertando uma política sinceramente americana na era Reagan”, globalização da economia… A natureza do homem é meticulosamente transformadora, provendo-se de uma incrível capacidade de emaranhar-se.
 

Tony Kushner, o autor de “Angels in América”, a peça arrasa-quarteirão montada em todo o mundo, instiga com a peneirada. Política, Aids, sexualidade, racismo e religião passeiam pelo texto com objetividade sem igual. Vai direto ao assunto.
 

Incomoda. Tanto que estreou no gueto, por assim dizer, em São Francisco (EUA), há quatro anos, para depois chegar à Broadway de fato, dois anos depois. Quando a peça tem a dizer, não cala: ganhou os prêmios Politzer e Tony.
 

O acesso a “Angels in América”, ainda não traduzida no Brasil, se dá pela montagem da primeira parte da peça, “O Milênio Se Aproxima” – a outra é “Perestroika” -, que entrou em cartaz semana passada na Capital.
 

Felizmente, a tradução de Isa Mara Lando e a concepção do diretor Iacov Hillel atingem um tratamento à altura do texto de Kushner, atualmente 38 anos.
 

A adaptação de Hillel cometeu alguns cortes, mas sem prejudicar, ao que parece, a densidade da história que envolve oito personagens-chave; entre eles um casal homo e outro heterossexual.
 

Prior Walter é namorado do judeu Louis Ironson, que o abandona em plena convalescência pelo vírus da Aids. Joe e Harper Pitt formam o outro casal, mórmons, sendo ele um homossexual reprimido e ela viciada em Vallium por conta de um relacionamento frio.
 

O personagem Roy Cohn, um advogado, é baseado no assessor do senador americano Joseph MaCarthy, morto de Aids em 1986. Belize é um travesti negro e o Anjo, por fim, representa o mensageiro.
 

Através desta síntese panorâmica contemporânea, “O Milênio Se Aproxima” chacoalha os sentidos do espectador, bombardeado por informações/provocações em duas horas e quarenta minutos de montagem.
 

 

Católicos e Judeus

 “Os católicos acreditam no perdão, enquanto os judeus na culpa”, afirma uma rabino que aparece no início. Simbolicamente encomendando um corpo, empurrando um caixão. “Roy Cohn não é homossexual, Roy Cohn é heterossexual que trepa com homossexual”, dispara o próprio no consultório, após resultado do teste: HIV positivo.
 

A montagem deve muito do impacto aos atores. João Vitti, que vem de uma atuação mediana em “Budro”, aqui se entrega literalmente a Prior Walter. Magro (perdeu 10 quilos para a peça), oscila entre a graça e o desespero do pivô da história. Cássio Scapin, que faz o companheiro, o confuso Louis Ironson, é que melhor explora o humor negro injetado por Kushner.
 

Lúcia Romano está perfeita no papel da insegura e alucinada Harper Pitt. Principalmente na fragilidade corporal que emana. O veterano Rodrigo Santiago faz um Roy Cohn visceral, dimensionando a ambição desgarrada pelo poder.
 

Iacov Hillel, também responsável pela cenografia, impõe uma direção correta, correspondendo ao realismo narrativo do autor. Preservou o humor instantâneo do texto, sempre preocupado com o ritmo pulsante – não esmorece nem nos blecautes que entremeiam as cenas.
 

“Angels in América”, a peça, ou “O Milênio Se Aproxima”, a primeira parte, profetizam um futuro imediato onde o homem terá que desnudar-se dos preconceitos e “pesos” de dogmas vários, como condição sine qua non para se atingir o mínimo de existência digna. Não se trata de julgar, mas conjugar.
 

 

Angels in America – O Milênio se aproxima – De Tony Kushner. Direção: Iacov Hillel. Tradução: Isa Mara Lando. Figurinos: Fábio Namatame. Trilha sonora: Tunica. Com Milah Ribeiro, Eliana Guttman, Luis Miranda e outros. Quinta a sábado, 20h30; domingo, 19h30.
Teatro João Caetano (rua Borges Lagoa, 650, Vila Mariana, próximo ao metrô Santa Cruz, tel. 573-3774). R$ 8,00. 2h40. Até setembro.

 

 

Razões Inversas encena loucura de Torquato Tasso

 O diretor Márcio Aurélio e sua Companhia Razões Inversas (“A Bilha Quebrada”) estréiam hoje “Torquato Tasso”, espetáculo que participou recentemente no Festival de Caracas, na Venezuela.
 

Trata-se da história do poeta italiano Torquato Tasso (1544-1595), “o último grande clássico” e “ídolo dos românticos” na literatura universal. Foi uma figura bastante conturbada. Perdeu a mãe ainda jovem, esteve envolvido com censura inquisitorial, vítima de frustrações eróticas, protagonista da lenda do infeliz amor pela princesa Leonor D’Este, alternou períodos de lucidez e alucinação até mergulhar na loucura absoluta e morrer.
 

A loucura do poeta renascentista foi durante séculos uma das questões mais discutidas. Desconcertava que, desequilibrado, pudesse compor tão bem sonetos, canções e poemas. Surpreendia que, do hospital, escrevesse cartas tão lúcidas e convincentes.
 

O escritor alemão Wolfgang Goethe (1749-1832) publicou “Torquato Tasso” em 1790, uma tragédia em cinco anos. Apesar do contexto histórico, a peça é sobretudo uma criação da fantasia. Reflete o contraste entre o mundo artístico do poeta e a mesquinhez da vida cortesã no eterno conflito entre o idealismo e realismo.
 

A Razões Inversas discute a subjetividade di estado confrontando o poeta e a política a serviço da instituição, através do mecenato estatal. Desemboca também na luta do homem pela afirmação dos ideais e respeito dos seus sentimentos.
 

Márcio Aurélio explora o peso minimalista atribuído a cada gesto para trazer ao público o desejo neurótico, a paranóia, a loucura do universo do protagonista. A pesquisa cênica, por exemplo, prioriza a musicalidade das falas.

 

Torquato Tasso – De Wolfgang Goethe. Direção: Márcio Aurélio. Com Cia. Razões Inversas (Carla Gialluca, João Carlos Andreazza, Luah Guimarães, Marcelo Lazzarato e Paulo Marcello). Estréia hoje, 21h30. De terça a sábado, 21h30; domingo, 20h30. Centro Cultural São Paulo/Sala Jardel Filho (rua Vergueiro, 1.000, tel. 278-9787). R$ 8,00.

 

PS: link para o trabalho da tradutora Isa Mara Lando: www.vocabulando.com   

 

 

 

 


Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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