O Diário de Mogi – Quinta-feira, 04 de abril de 1996. Caderno A – capa
Autor e diretor revela em “Nowhere Man”, sua nova peça, apresentada em Curitiba, necessidade de ampliar canal com espectador
VALMIR SANTOS
Luis Damasceno, o primeiro-ator de Gerald Thomas , é homenageado pelo diretor em “Nowhere Man”, espetáculo que estréia amanhã no Festival de Teatro de Curitiba (FTC). “Fui o último que resisti 10 anos na companhia, desde o início”, ironiza Damasceno, 54 anos, em entrevista a O Diário.
Espontâneo, simpático, Damasceno confessa que é mais conhecido no meio teatral como “o tortinho do Gerald”. Até o terceiro ano na Ópera Seca, recebeu alguns convites pra montagens paralelas, depois, necas.
Não se incomoda com as polêmicas em torno da figura de Thomas. “Importante é que ele busca a qualidade como obsessão, não se satisfaz com o comum, sempre busca o novo”, defende.
O primeiro contato para o “Casamento” com o diretor surgiu há 11 anos, quando participou da montagem de “Carmem com Filtro”, na primeira versão que teve Antonio Fagundes e Clarisse Abujamra no elenco. Desde então, participou de todas as montagens. “Quando o Gerald pede uma cena, ele já sabe como vou reagir”, diz.
A intimidade a favor do processo. O diretor de “Trilogia Kafka”, “The Flash and Crash Days”, “UnGlauber”, “Império das Meias-Verdades”, entre outras montagens, tem no work in progress uma característica do seu trabalho. “Isso para o ator é maravilhoso, porque ele não fica parecendo um funcionário público”.
De formação stanislavskiana, Damasceno tem uma forte queda pela comédia (clown, pastelão). “Me preocupo muito com o gesto, procuro não “sujar” as informações para que elas cheguem claras, precisas”, diz.
Gaúcho de Porto Alegre, Damasceno formou-se em Artes Cênicas nos anos 60. Atualmente leciona na escola de Artes Dramáticas da USP.
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Damasceno, niilista e esperançoso
Gerald Thomas busca no “Fausto” de Goethe os personagens de “Nowhere Man”. É a primeira vez que peguei um texto dele e gostei logo na leitura”, admite Luis Damasceno. O ator destaca o enfoque humano que o autor e diretor dá ao novo trabalho.
Daí, a empatia do público já em “Don Juan”, espetáculo anterior, com Ney Latorraca, (aliás, Latorraca está em “Quartel”, de Heiner Müller, que será encenada em Curitiba após o festival). Quem assistiu aos ensaios garante que “Nowhere Man” é das montagens mais claras e emocionantes de Thomas.
Na história aparentemente nonsense, o personagem Fausto está na fila de um banheiro público. De repente, uma explosão. Surge um punk em disparada. Caído no chão, Fausto se esquiva e ri de mais uma peça que consegue pregar.
Thomas transpõe Fausto para o século 21, no seu aqui-agora. Faz uma crítica à voga da similaridade das coisas, da nivelação dos valores. “É quase niilista, mas ao final ele lança alguma esperança”, salienta Damasceno.
A montagem traz Milena Milena e Marcos Azevedo, ambos também da Ópera Seca, além de atores curitibanos, somando nove pessoas no elenco. A estréia mundial será na Dinamarca, em setembro.
Além de “Nowhere Man”, Curitiba também vai ver na semana que vem, a montagem de “Quartet”, de Heiner Müller. No elenco, Ney Latorraca, que já trabalhou com o diretor em “Dom Juan” e Edilson Botelho, conhecido de outras montagens da Cia. Ópera Seca. Thomas havia montado o texto de Müller, com Tônia Carrero. (VS)
Um novo Villela em “O Mambembe”
Minas de Gabriel Villela cede terreno para outros cantos do País em “O Mambembe”, de Arthur Azevedo, que o diretor montou na comemoração dos 50 anos do Teatro Popular do Sesi (TPS). A estética barroca, uma peculiaridade do seu teatro (“Vidas É Sonho”, “Guerra Santa”, “Rua da Amargura”, por exemplo), surge em segundo plano.
Na abertura das cortinas, o cenário uma vez assinado por Villela, expõe uma preocupação com espaços vazios, ao contrário da minuciosidade que outrora, às vezes, provoca uma certa poluição cênica. Uma mala gigante, suspensa, e as sete portas emparedadas, numa espécie de arena, ampliam a presença dos 25 atores que passam pelo palco durante a encenação.
“O Mambembe”, obra que Azevedo escreveu no início do século, é uma homenagem apaixonada ao teatro – àqueles que dedicam suas vidas a percorrer cidades interioranas para levar sua arte às populações locais. O formato é musical e, na montagem em cartaz no TPS, uma grupo regional, comandado por Fernando Muzzi, dá conta do instrumental.
As melodias originais do compositor Assis Pacheco foram substituídas por fragmentos de peças da música popular brasileira, como “Trenzinho Caipira”, de Villa-Lobos, mescladas a clássicos eruditos, como a ópera “Carmen”, de Bizet, e “Aída”, de Verdi.
Como se vê, a intenção de Villela foi desprezar o tom saudosista. O espetáculo, desta forma, ganhou em termos de sátira e paródia. Também o texto de Azevedo ganhou alguns enxertos.
No terceiro ato, o diretor e adaptador criou um concurso de teatro, emprestando uma aura popular à cena. A mineridade ganha projeção no quadro em que a trupe mambembe interpreta um trecho de “Romeu e Julieta”, se Shakespeare, aqui transformada em “Goiabada com Queijo”, para agradar aos censores do festival imaginário.
Eis que de repente surge a figura de uma Veraneio, numa lembrança à premiada montagem de “Romeu e Julieta”, que Villela dirigiu com o grupo mineiro Galpão. Também executado um tema da trilha daquele espetáculo, neste aspecto, usou-se de o saudosismo em maior grau: ao final, uma tela projeta imagens de nomes fundamentais da história do teatro brasileiro (de Cacilda Becker a Ziembinski, por exemplo, passando por Wanda Fernandes, atriz, do Galpão que vivia Julieta e morreu em um acidente.
A primeira parte de “O Mambembe”, pelo menos na estréia, ainda denotava um rigor na marcação coreográfica que lhe tirava o brilho. A partir da metade, porém, o espetáculo embala. São, ao todo, dez coreografias, assinadas por Vivian Buckup.
Não há propriamente grandes estrelas no elenco. Percebe-se em “O Mambembe” uma nova perspectiva no teatro de Villela, tende à “limpeza” cênica, – como se encerrasse uma fase da carreira -, priorizando-se o trabalho de ator. “Mary Stuart”, sua outra montagem em cartaz, com Renata Sorrah e Xuxa Lopes, já trazia esta preocupação. Agora, no musical de Azevedo, está em busca da síntese (interpretativa e cenográfica).
Pena que falte um grande ator ou atriz. Raul Barreto (do grupo Parlapatões, Patifes e Paspalhões) está lá, porém minimizado. (VS)
O Mambembe – De Arthur Azevedo. Adaptação e direção: Gabriel Vilela. Teatro Popular do Sesi (avenida Paulista, 1.313, tel. 284-9787). De quarta à sexta-feira, às 20h30; sábados, às 17 horas e 20h30 e aos domingos, às 17 horas. Ingressos gratuitos devem ser retirados com uma hora de antecedência.
Dizer que Gerald Thomas mudou é exagero. “Nowhere Man” (Homem em qualquer lugar) não inaugura uma fase. O novo espetáculo, apresentado semana passada no Festival de Teatro de Curitiba, é coerente com a proposta estética e dramatúrgica do diretor-autor.
A concessão para o humor mais aberto não é tão elástica assim. Quem tem Luis Damasceno – ou, antes, Fernando Torres -, comediantes na concepção mais profunda da palavra, já percorreu boa parte do caminho.
Pois é Damasceno, 54 anos, dez de Cia. de Ópera Seca, a grande estrela da montagem. Thomas escreveu para o ator. Mas a pessoalidade da obra permite, também, vislumbrá-lo em cena.
O Fausto de Damasceno enseja parte da “crise” do criador. O “nosso herói”, como informa a narração em off, na voz do próprio, tece comentários sobre a voga de interpretações estridentes, nas quais atores, invariavelmente aos berros, costumam arrebatar. “O meu fracasso, aplaudirão de pé”, conclui.
Questionando-se até a medula, Thomas fala, através de seu personagem, que a única opção que lhe resta é a do ciclo inevitável do “nascer e morrer” a cada dia, a cada história, a cada cena.
“Ninguém me entende. Vocês me entenderam?”, indaga Fausto. Lineariedade, tudo bem. Mas com a ótica fragmentada do diretor. Gestos, cenários, luz, música, palavra, enfim, tudo está impregnado de signos.
O personagem-título de Goethe é transposto para terra brasilis. A terra vermelha batida, latões, escapamentos, tubulações. Sufocado pela padronização implacável, que dita gostos, comportamentos – fascismo à la Holocausto; pela relação amorosa aos pedaços (vela a musa ensangüentada sobre a mesa)… Fausto busca uma saída.
Nem o refugo da terceira dimensão, com a violeta estilização publicitária, o conforta. Resta o retrocesso à gênese. O Fausto de Damasceno/Thomas reata o cordão umbilical.
(Parênteses para um rasgo de emoção raríssimo em se tratando do encenador. O “nascimento” de Fausto, com Damasceno nu, sangue da placenta cobrindo o personagem, surgindo por um buraco no centro da mesa, enquanto a mãe abre as pernas, simultaneamente, ao lado, para dar à luz. Damasceno constrói um bebê delicado , de um poder lúdico impressionante).
A memória corta para o assassinato da mãe pelo pai. A criança assiste a tudo. Agora, no presente – se é que se pode fazer algum tratamento de tempo as peças de Thomas – , surge uma espécie de conselho lacaniano para analisar o trauma. “Nowhere Man”, assim como “M.O.R.T.E.”, “Império das Meia-Verdades” e “UnGlauber”, para citar algumas peças, alijam o psicologismo. Freud é sempre ironizado. Aqui, os discípulos de Lacan, enfermeiros, defecam em privadas antes de ter com o paciente…
Ponte entre a busca do tempo perdido de Proust e o Quincas Borba de Machado de Assis; a obsessão em estabelecer relação com a origem do chorinho nas composições de Goerge Gershiw; o samba “Quem Te Viu Quem Te Vê”, de Chico Buarque, em versão sueca, techno, na cena final.
O exílio do “nosso herói” não tem fronteiras. Thomas roça com o Brasil universal. “Nowhere Man” levou 21 dias para ser preparada. Houve apenas 48 horas para ensaios no palco do Teatro Guairinha, com cenário e luz. “Foi uma loucura”, disse antes da primeira apresentação. A estréia oficial será em setembro, em Copenhague (Dinamarca), capital da cultura européia em 96. Em Curitiba, seria um ensaio aberto. Mas, como admite Thomas, a peça está praticamente pronta.
Quem te viu, continua vendo com a mesma atenção para se agarrar a um fio. Thomas amplia seu canal de comunicação com a platéia, mas sem muitas concessões. O roteiro dramatúrgico, ao que parece, é o que melhor chega, para alento do espectador.
“Começo uma nova fase a cada manhã”
Gerald Thomas no centro de uma entrevista coletiva é um festival de pérolas. Com ironia contumaz e bem-humorada – ainda que algumas respostas soem ríspidas -, ele adianta pouco de “Nowhere Man”, na véspera da estréia em Curitiba, semana passada. Mas fala à vontade do se “estilho”, critica congêneres brasileiros (exceção de Antunes Filho, a quem devota respeito confesso), enfim, não faltam as idéias e, claro, as polêmicas.
CRIAÇÃO – Primeiro eu penso na ação e depois na dramaturgia. Geralmente crio as cenas já com o ator na cabeça.
DAMASCENO – O Fausto aqui é um misto dele comigo. [É indagado se Damasceno seria seu Luis Melo, em referência ao ex-ator de Antunes]. Pode até ser, mas não estou despedindo ele por fax e quero que ele compre mais eletrodomésticos (ri).
FAUSTO – Qualquer ser em crise, em momentos étnicos e culturais de transição, que tem sede pelo poder da eternidade, tudo isso é Fausto.
ELENCO – A maior dificuldade em trabalhar com parte do elenco de atores de Curitiba foi a língua. É difícil…”leeite quiente” (ri). Preciso de um tradutor…
CRÍTICA – A imprensa inventa certas coisas e também invento as minhas. Venho fazendo humorismo desde “The Flash and Crash Days” e sempre dizem que estou começando uma nova fase, mais cômica. Para mim, começa uma nova fase a cada manhã que me olho no espelho.
CLASSE – Tenho muita segurança que faço, por isso as pessoas gostam de me atacar… É assim com essa classe teatral moribunda, com peças de “merda”… Quem faz sucesso lá fora é sempre criticado… Aconteceu com Jobim, com Carmen Miranda…
DIRETORES – A diferença entre eu e Villela, Moacyr Góes, Bia Lessa e outros é que eu escrevo meus textos. Co exceção de alguns “amigos” meus, como Beckett e Müller, não costumo montar outros autores. Chega de montar “Hamlet”! Porque não pensar em texto novo?… O teatro brasileiro é feito de alunos querendo tirar nota 8 ou 10 com os clássicos… Com Antunes é diferente, ele descobre textos importante, como “Vereda da Salvação” e “Gilgamesh”… É o que mais respeito por aí, porque está sempre pesquisando a dramatização.
IMAGEM – Em 1861, Wagner (compositor alemão) já dizia que o teatro é a “obra de arte total”. Não existe essa classificação de imagem, de palavra.