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O Diário de Mogi

Teatro jovem uruguaio não teme a ousadia

27.10.1996  |  por Valmir Santos

O Diário de Mogi – Domingo, 27 de outubro de 1996.   Caderno A – 4

 

Mostra encerrada na semana passada revela potencial criativo de estudantes do país vizinho 

VALMIR SANTOS

 

A distância geográfica não é inversamente proporcional ao intercâmbio cultural entre os países da América do Sul. Existe um fosso abissal, mesmo em tempos de Mercosul. Foi o que O Diário constatou em Montevidéu, “Capital Ibero-Americana da Cultura”, durante a 2ª Mostra Internacional de Teatro Jovem, encerrada domingo passado.

Grupos do Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Peru se reuniram na capital do Uruguai de 11 a 20 de outubro. Organizada pela prefeitura do local, a mostra constitui verdadeira vitrine do teatro escolar no país vizinho. E aí a primeira surpresa: os jovens uruguaios nutrem uma paixão pelo palco tão imensa quanto a dos brasileiros pela telenovela. Não precisa muito esforço para saber quem leva vantagem na balança da formação cultural e, por extensão, da perspectiva humana.

Entre nós, quando se fala em teatro escolar, logo vem a imagem daquelas “montagens” fáceis, invariavelmente infantis, no pior sentido da palavra. Professores que nunca assistiram a uma peça, de repente são içados a juntar crianças e adolescentes para ler “Alice no País das Maravilhas”, por exemplo, com um tratamento de deixar Lewis Carroll em polvorosa no túmulo.

Amadorismo tacanho, mediocridade, ignorância da inteligência alheia, descaso com elementos básicos da arte da representação, enfim, fantasmas como esses são raros no jovem teatro uruguaio. Ao contrário, os grupos emergentes não se abstêm do exercício elementar da criatividade. Há ousadia na concepção do texto (geralmente um fruto coletivo), na interpretação, na cenografia. O terreno é propício à intervenção do novo. No Uruguai, os jovens têm gana de mudanças. Não se acomodam sob a hoste da estética cênica.

Pesquisam e experimentam formas; reinventam sem medo, mas com fundamento. A gratuidade passa longe. A ressalva no movimento atual fica por conta do que parece ser uma ausência de direção, de norte para os processos em andamento. Ou seja, existem ótimas idéias que às vezes não são bem trabalhadas. O amadurecimento é um ponto-chave.

 

Maratona

A 2ª Mostra Internacional de Teatro Jovem teve 95 grupo inscritos (de escolas, de bairros, de centros comunitários). Da maratona cênica, um júri selecionou oito peças, apresentadas ao lado de companhias estrangeiras.

O grupo Pombas Urbanas, de São Paulo, representou o Brasil com “os Tronconenses”, já encenada no Teatro Municipal de Mogi, há cerca de três anos. Os nove atores, dirigidos por Lino Rojas, encontraram nos colegas do Uruguai uma referência importante. Afinal, os projetos têm pontos em comum: jovens sem “vícios”, em busca de um teatro de menos casca e mais essência. (A essa altura, reconheça-se , nem as palavras conseguem traduzir tal instância de força e energia de palco).

Da Argentina, se apresentaram Agrupación Folidramática Te Quisimos Con Locura (“Adiós y Buena Suerte”, com direção de Cristian Marchesi); e La Mixta (“Woyzec”, de Büchner, direção de Javier Rama). Do Chile, o grupo Teatro Cancerbero (“Carícias”, de Sergi Belber, direção Andrés Céspedes). Do Paraguai, Equino Teatro (“Yepetto”). E do Peru, “La Mujer Sola”, de Dario Fo, monólogo representado por Maribel Alarcón, direção de Jean Cottos.

O Diário destaca três espetáculos uruguaios selecionados. Em “Reptar es Sólo un Mérito”, monólogo escrito, dirigido e interpretado por Nicolás Becerra, o público acompanha esquetes sobre situações tragicômicas extraídas do cotidiano. Becerra tem presença de palco suficiente para garantir o ritmo. Uma das passagens mais irônicas e contundentes se dá quando encarna uma noiva desesperada pelo companheiro que não chega à igreja porque está preso. Motivo: fumou marijuana na esquina.

Em “Crímenes y Resfríos” (Crimes e Resfriados), o grupo Acapara el 522, dirigido por Daniel Hendler, mostra um trabalho onde as imagens são fundamentais. A iluminação, marcada principalmente pelo projetor de slides, delimita tempo e espaço de histórias simultâneas. A exposição da fragilidade humana, da capacidade de conspiração contra o outro – a ponto de lhe ceifar a vida – é uma das maiores virtudes do espetáculo.

Um mergulho na estética, vertendo mais para uma instalação ou performance, foi a opção de outro grupo de Montevidéu cujo nome, define bem sua proposta: Imágenes de la Mente. Com “Esto no es una Vaca 2”, criação e direção coletivas, rompe-se a relação palco-platéia. A ação se passa justamente no vão que os separa, com o público sentado no chão.

Fechado em uma cabine plástica, transparente, o personagem enigmático (um açougue, talvez) extrai filetes de carne da cabeça ensangüentada de uma vaca. Ao lado, monitores de TV exibem vídeo de animais no curral, no corredor do abate. Lembra a letra de Zé Ramalho: “Vida de gado/Povo marcado/Povo feliz”. Aos poucos, o “açougueiro” tira o avental e se revela um executivo engravatado. Cobre a cabeça da vaca com a bandeira do Uruguai, ao som do hino nacional.

Para uma mostra escolar, “Esto no es una Vaca 2”, num contexto brasileiro, remete aos festivais universitários de música dos anos 60 e 70, nos quais os compositores faziam críticas ao regime militar. Não é o caso do Uruguai, mas nem por isso a juventude se esquiva do contexto social e político.

Atualmente, o país discute um reforma educacional que, no esboço, traz mais complicações do que benefícios. Mote suficiente para uma passeata pelas ruas de Montevidéu e respectiva ocupação de alguns colégios em protesto contra a imposição do projeto. Resultado: o governo inclui representantes dos alunos no conselho que discute as mudanças.

É assim, teatro e vida associados. Consciência social e autoconhecimento. O contato com o Uruguai neste final de milênio, um dos berços da consolidação do teatro latino-americano nos anos 50 – o Galpão e o Circular são grupos históricos, hoje com salas próprias e verdadeiras instituições do país – evidencia o potencial dos jovens para transformar a arte do ator, através de muito suor e honestidade.

Quem assistiu ao espetáculo “Brincante”, que fez temporada em São Paulo ano passado e agora está em cartaz no Rio de Janeiro, conferiu um dos trabalhos mais bonitos do teatro nacional contemporâneo. O pernambucano Antônio Nóbrega encantou com a brasilidade mostrada no palco: um cadinho do folclore nordestino em meio à dura realidade de um povo, acostumado a sobreviver combatendo principalmente a fome.
“Brincante” já se mostrava com potencial religioso. O personagem de Nóbrega, o funâmbulo Tonheta, antes de mais nada, tinha fé na alegria de viver. O amor lhe movia montanhas. Um dos responsáveis pelo sucesso de “Brincante”, o artista plástico Romero de Andrade Lima, autor do belo cenário, agora brinda o público com uma montagem própria, “Auto da Paixão”, onde mistura teatro, artes plásticas e canto.
A idéia de “Auto da Paixão” surgiu quando Lima teve de criar uma encenação para a vernissage de uma exposição sua, realizada em maio. As três noites de apresentação se transformaram em sete, por causa da grande procura. Limam, então, decidiu montar uma companhia com As Pastorinhas, um coro formado por 12 meninas.
Elas percorrem 12 retábulos/esculturas de lima que representam a Paixão de Cristo, com narração (feita pelo próprio autor) e cânticos sobre a vida de Jesus. O espetáculo recria procissões, reisados e pastoris, resgatando o espírito da festa popular nordestina, combinando sagrado e profano.
“Auto da Paixão” é como uma procissão. O público acompanha o coro que percorre as obras de Lima, instaladas em pontos diferentes do galpão Brincante, uma cria de Nóbrega, em plena Capital. Guardadas as devidas proporções, a polêmica peça encenada na Igreja Santa Ifigênia.
O espetáculo de Romero de Andrade Lima só é prejudicado pelo excesso de espectadores. As cem pessoas tornam a movimentação das pastorinhas um tanto tensa. A cada cena, elas são obrigadas a se espremer entre o público para se deslocar.
Ademais, “Auto da Paixão” é um deleite para olhos e alma. O repertório é composto de toadas populares que Lima escutava na casa do tio Ariano Suassuna, mentor do movimento Armorial na década de 70. O clima barroco (cenários, iluminação, figurino) transporta a um estado delicado do ser, a uma contemplação do divino de perto. Um espetáculo imperdível.
Auto da Paixão – De Romero de Andrade Lima. Com As Pastorinhas. De quinta a sábado, 21h; domingo, 20h. Cr$ 200 mil (quinta a sábado) e Cr$ 250 mil (domingo). Teatro Brincante (rua Purpurina, 428, tel. 816-0575). Até dia 15 de agosto.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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