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O Diário de Mogi

Nelson de Sá faz crítica da diversidade

6.4.1997  |  por Valmir Santos

O Diário de Mogi – Domingo, 06 de abril de 1997.   Caderno A – 4


VALMIR SANTOS

CURITIBA – Nelson de Sá aproveitou a última edição do Fes­tival de Teatro de Curitiba, mês passado, para distribuir um ca­tálogo do seu primeiro livro, a sair nos próximos dias pela editora Hucitec. Com fotos de Lenise Pinheiro, “Divers/Idade – Um Guia de Teatro dos Anos 90” é uma coletânea de textos publicados na ‘Folha de S. Paulo”, onde trabalha há oito anos. São críticas e reportagens que refletem tendências da década, até aqui. Da renovação dramatúrgica encabeçada, acredita, pelo americano Tony Kushner (“Angels in America”) ao rito cênico católico do pernambucano Romero de Andrade Lima (“Auto da Paixão”), Sá re­sume o que sua parabólica captou até agora. Tem carinho especial por Zé Celso (autor da “orelha” do livro), de quem chegou a ser assistente. “Não sou niilista, tenho esperança”, afirma o paulista de Andradina. Paralelamente, assina coluna de análise do tele­jornalismo brasileiro, invariavelmente alfinetando. Na conversa com O Diário, em Curitiba, Sá falou de sua formação, influência de Francis, retratações, espetáculos preferidos, fio que separa a atuação de crítico e de artista, enfim, de “Divers/Idade”.

 

O Diário – Como foi a pesquisa?
 

Nelson de Sá – Eu fui lá no cadernão da “Folha”. Fiquei lá pesquisando. Depois da quarta hora, você nem sabe mais o que está vendo. Não só as críticas, mas textos de tendências, de panoramas do teatro brasileiro, como a reafirmação da drama­turgia, do teatro ritual, com a­bertura maior para presença do ritual religioso, de uma cultura popular. Enfim, tem entrevistas também.

 

O  Diário – E essa volta ao começo, essa retrospectiva dos anos 90 até aqui? Houve surpresas, mudanças signifi­cativas nos trabalhos dos gru­pos, diretores ou autores?
 

Sá – Fiquei surpe­endido com alguns artistas… Havia uma certa unidade gera­cional, que começou na virada dos anos 90 e estabelecia o que eu imagino ser um novo momento no teatro brasileiro.

 

O  Diário – O que você i­dentifica de mndança dos anos 80 para os 90?

Sá – Os anos 80 foram do diretor e do trabalho visual, tanto Antunes Filho como Gerald. A dramaturgia não era o centro. Em dezembro de 90, acho interessante, morrei Tadeuz Kantor, o “pai” do teatro visual. Gerald Thomas, que era o nosso paradigma do teatro visual, escreveu M.O.R.T.E.”. A partir daí o teatro estilhaçou, o teatro foi para todos os cantos imagináveis. Tem outros aspectos que a gente pode colocar aí: a queda do Muro de Berlim, em 89, que abalou a cabeça de todo mundo, trouxe um novo momento não só para o teatro, mas para a sociedade em geral. Com o fim da “velha ordem”, tudo era possível. O teatro refletiu isso. Foi muito bonito acompnahar esse momento, e continuar acompanhando, porque a coisa continua. Daí o título do livro, “Divers/Idade”, a idéia de uma idade da diversidade, de uma idade que não existe mais, sem programa comum. É até engraçado…
 

Entrevistei o Décio de Almeida Prado – e ele autorizou colocar como citação no abre do livro -, ele disse que na época dele, por mais que as pessoas fizessem coisas diferentes, havia uma linha comum que unia, de certa maneira, as coisas mais aparentemente díspares. TBC e Arena tinham pelo menos um eixo. Hoje em dia não tem mais isso.
 

O Diário – Que pessoas, espetáculos-chave, aspectos da atuação e dramaturgia que o livro destaca?
 

Sá – Em termos de espetáculos, no Brasil e no exterior, a grande peça da primeira metade dos anos 90 foi “Angels in America”. É inquestionável. Deu a possibilidade de poder retornar a dramaturgia no mundo, com temas da realidade contemporânea. Abriu caminhos. Ela foi escrita em 90, eu a vi em 92 ou 93, em Londres. O texto mais longo do livro, inclusive, é uma entrevista com Tony Kushner, o autor.
 

No Brasil destaco “Romeu e Julieta” do Galpão, dirigido por Gabriel Villela. Teve “Auto da Paixão”, de Romero de Andrade Lima, com As Pastorinhas, um rito católico muito significativo. Teve “M.OR.T.E.” e “Fim de Jo­go”, duas peças com títulos in­teressantes, fim de um tempo mesmo. A primeira do Gerald e a segunda de Beckett. Tem ain­da “O Livro de Jó”, dirigida por Marco Antônio Araújo, e “A Bao Qu”, de Enrique Diaz. E mais recentemente está come­çando a entrar finalmente a se­gunda metade dos anos 90, que pretendo retratar posteriormen­te. São peças de dramaturgos que a gente pode caracterizar mais claramente como um mo­vimento. A expressão é horrí­vel, eles odeiam, acham que não é um movimento em si, no que eles estão certos, mas de qualquer maneira. nós como jornalistas e tutores, podemos reduzi-lo a um movimento nessa altura. Tem vários autores, como Dionísio Neto, Fernando Bonassi, Patrícia Melo, Bôsco Brasil. O diferencial dramatúrgico é que são realistas, de certa maneira, porque tentam retratar a realidade cotidiana, urbana que as pessoas vivem, espelho da vida.
 

Espetáculos como “Banheiro” e “Opus Profundum”, mais do que tentar revolucionar o mundo, falam de si mesmos. “Eu vivo isso e olha aqui”, é mais ou menos essa idéia.

 

O Diário – E aí o Antunes ficou fora?
 

Sá – Não, ele é um grande diretor. O problema é que o livro tenta identificar a nova leva de autores, diretores e atores… Aliás, deixei de falar de Antunes. Ele teve atores geniais neste período. O trabalho do Eduardo Moreira no Galpão, de Marcelo Drummond no Oficina… É sempre complicado citar nomes.

 

O Diário – Dá para apontar esteticamente as tendências nos primeiros anos da década?
 

Sá – Houve uma revalorização muito grande da cultura popular, do teatro de rito, onde a figura de Deus é mais presente. Como em “Auto da Paixão”, “As Suplicantes”, “A Rua da Amargura” de Villela, o trabalh do Antonio Nóbrega; “O Livro de Jó”, baseado na bíblia etc. É mais uma tendência do que movimento. Se falar assim os caras têm ataque…
 

Outra coisa foi a retomada da palavra na dramaturgia. São duas vertentes conflitantes, o ritual e a palavra. Mas ao mesmo tempo é um mundo em que a gente vive, um mundo da diversidade.
 

Houve também uma ruptura no eixo Rio-São Paulo, com grupos de Belo Horizonte, João Pessoa, Porto Alegre, festivais de Londrina, de Curitiba, uma explosão de cultura que reflete o momento que estamos vivendo. As culturas regionais estão ga­nhando mais força do que antes.

 

O  Diário – Você chegou a trabalhar com Zé Celso…
 

Sá –Eu fui assitente de di­reção em “As Boas”, adapta­ção de “As Criadas”, de Jean Genet. E traduzi “Ham-Let”. “As Boas” foi um trabalho mu­ito problemático. A “Folha” é um jornal que joga pesado com essa questão de distancia­mento. Eu estava fazendo uma coisa que achava ao mesmo tempo certo e errado. Eu mes­mo me questionei. E botei na minha cabeça que não podia escrever sobre nenhuma das duas pecas. Esse foi meu limi­te na “Folha”.

 

O Diário – Existe algum tipo de cerceamento às suas críticas?
 

Sá – Tem assim uma ou outra restrição… Pode-se fazer então…Mas censura não, nenhuma, zsero. Na estréia do primeiro espetáculo de Otávio Frias Filho (“Típico Romântico”), por exemplo, fiz uma crítica negativa do espetáculo e criou uma polêmica muito grande com o diretor da peça (Maurício Paroni de Castro) e nada foi questionado ou limitado.

 

O Diário – Como lida com as críticas ao seu trabalho? Tem muitos inimigos?
 

Sá – Inimigos também não né (ri). Tem problemas, sim… Bom, ninguém gosta de não ser gostado. Só mesmo diretor de teatro para achar que vaia é a glória… Não existe carinho na vaia. Eu procuro me agarrar às regras do jornalismo.

 

O Diário – Já teve críticas que retratou?
 

Sá – Teve milhares… Milhares não (ri). Eu não consigo lembrar aqui… Teve coisas que eu poderia ser menos agressivo. O difícil é quando você cai no tom pessoal. Uma vez o Décio, quando soube que eu estava trabalhando com Zé Celso, ele disse que crítico não pde. Na época eu achava que era uma experiência para completar um ciclo e me tornar um crítico de fato. Ele falou que crítico de teatro não vai na coxia, não vai no bastidor, não vai em festas da classe. Enfim, crítico tem que ficar fora. Acho importante o crítico saber que ele não tem partido.
 

Eu aprendi isso. Saí da companhia do Zé Celso por causa disso. Cria-se uma situação que prejudica o seu trabalho jornalístico depois. Tem que ser de uma frieza jornalística, um distanciamento, mesmo com os amigos. É como você ficar amigo da fonte e privilegiá-la. Uma vez escrevi uma crítica do Zé Celso {“Mistérios Gozozos” } e ele me disse que chorou. O próprio Zé Celso e as pessoas da classe em geral criticam esse distancia­mento, acham bobagem. Mas eu não acho.

 

O Diário – Para você, a crí­tica é antes uma atitude jorna­lística?
 

– É jornalismo sim. Isso não é novo. O Décio, teve mo­mentos em que ele se disse da classe teatral e outros em que disse exatamente o contrário. O Brasil teve um momento em que o jornalismo tinha uma configu­ração ideológica maior. Eu só faço refletir no trabalho de críti­ca uma coisa que é do próprio jornal hoje… Da mesma maneira que tem uma diversidade de teatro existe uma diversidade de críticas.

 

O Diário – Qual a função da crítica hoje no Brasil?
 

Sá – O papel da crítica em geral… Assim como no teatro, você tem várias vertentes. Não existe uma crítica só, e isso não é so no Brasil. Questões básicas para mim são: eu faço uma crítica para o leitor, não para o espetáculo. Obviamente existem várias coisas próprias do teatro. Tem peças que você considera boa mas, enfim, você vive num mundo que tem milhares de referências na televisão, no rádio. Outra questão importante, que não está nem na minha boca, foi dita pelo Otácio Frias Filho, diretor de redação do meu jornal, por acaso também um dramaturgo… Por acaso não, também um dramaturgo. O jornalismo hoje é  mais massificado do que era 40, 50 anos atrás. As tiragens dos jornais são milhares. Para esse público, o “leitorado”, como a gente costuma dizer, por mais que a gente tenha um carinho muito grande pelo teatro, um carinho que eu tenho, para esse público o teatro não é prioridade.
 

Cinema, televisão e música popular são prioridades básicas hoje na cobertura de cultura de qualquer jornal. Isso tem várias implicaçõe em relação à crítica. Uma delas é o espaço menor. A gente tem que se adaptar e é a realidade. E isso não é só no Brasil. Crítica em Nova Iorque, em Paris também tem espaço menor. Paulo Francis escrevia uns 50 centímetros. A minha média hoje é de 35 centímetros.

 

O Diário – O que você busca no exercício da crítica?
 

Sá – Existe uma discussão antiquérrima se a crítica é técnica ou subjetiva. Eu não acredito em crítica técnica, acho impossível. Pessoas com as quais me formei não acreditavam nisso, não têm isso como base. A idéia da crítica técnica, imparcial, is­so é uma fantasia, não acho vi­ável. Quem gostaria de uma crí­tica técnica, com critérios técni­cos, com padrões técnicos é a própria classe teatral. Isso é nor­mal no Brasil e no exterior.

 

O  Diário – Não dá medo que a crítica acabe diante da falta de espaço nos jornais? Você, por exemplo, divide a função com uma coluna  diária que analisa o noticiário da televisão.
 

Sá – Acho que é uma função necessária para o Jornalismo, para o 1eitor. Acredito que ainda é necessário, mas não tenho certeza se ela vai acabar. A crítica não existe há muito tempo. Aliás, como direção de teatro, um pouco mais de 100 anos.

 

O Diário – Fale um pouco da sua formação.
 

Sá – No final do livro, readaptei uma palestra que fiz para o Festival Internacional de Teatro de Londrina, onde exponho mais a minha formação… eu sou um jornalista formado, não tenho formação específica de teatro. Fiz peças amadoras, cursos de ator. De dramaturgia, mas meu trabalho é jornalístico… Não sou da classe teatral… Mas a formação verdadeira, nesse sentido, teve vários fatores, professores neste caminho. Na faculdade de Jornalismo tinha um professor, Péricles Eugênio da Silva Ramos, que fez a tradução de “Hamlet” para o Sérgio Cardoso, nos anos 50. Era um senhor maravilhoso, poeta que tinha uma paixão muito grande pelo romantismo. Eu me sinto de certa maneira influenciado por ele porque também tenho um gosto pelo romantismo, pelos espetáculos que tragam uma carga, que buscam uma certa verdade anti-formal, que era o que os românticos traziam. O crítico da “Folha” nos anos 50, Miroel Silveira, que adorava, era amigo pessoal, também me influenciou.
 

Mas o que moveu realmente a atuar na crítica foi o trabalho com o Francis. Fui enviado pela “Folha” em 87/88 para trabalhar em Nova Iorque com Paulo Francis, que foi crítico nos anos 50, começo dos 60, no Rio. E veio dali a vontade mesmo de ser crítico. A influência do Francis sobre mim foi avassaladora. Todo o meu trabalho posterior foi de certa maneira em função do que ele me ensinou. Naquela época, eu era correspondente bolsista da “Folha”. Era um pouco assim um lugar-tenente ou garoto de recados do Francis.
 

Eu lembro de uma frase formal, uma recomendação do Caio Túlio Costa, se não me en­gano, para quem ía trabalhat com o Francis lá: “Aprender com Paulo Francis sem copiar o seu estilo” (ri). Eu aprendi com ele, copiei o seu estilo, enfim… (ri). Mas é a influência básica que eu tomo como formação no meu teatro. Mas com o tempo eu rompi com ele como crítico, como jornalista, com relação ao trabalho dele, com os comentários como o de que o Vicentinho merecia chibatadas…
 

Uma série de coisas assim impublicáveis. Eu adoro o Francis, tenho paixão veneração, mas não pode. Chegou um momento em que acreditava naquilo, e hoje não mais.

 

Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário”

 

“Arrogância” do texto não confere com lado pessoal

Texto enxuto, por vezes cruel, isento. A pena de crítico tem pouco a ver com o perfil pessoal de Nelson de Sá. Onde a “arrogância” apontada, por exemplo, pelo diretor Maurício Paroni de Castro (“Típico Romântico”), dos seus piores desafetos em oito anos de cobertura teatral na “Folha”? Nada – pelo menos fora do papel. Pinta de moleque, invariavelmente tênis e calça jeans, não aparenta os 36 anos. A polêmica o persegue (ou ele a atrai?) sistematicamente desde o início, em 1989. Numa das três primeiras críticas que publicou no caderno “Ilustrada”, certo diretor – prefere não revelar o nome – foi tirar-lhe satisfação em plena redação. O jornalista correu entre cadeiras e só não foi agredido por causa dos seguranças. Assustado com o episódio, se eximiu de escrever por um tempo. Retomou no ano seguinte, mais seguro. Desde então, lida sem complacência com a “classe teatral” (“Eu não faço parte dela”, faz questão de dizer). Não poupou sequer o patrão, Otavio Frias Filho, autor da mesma “Típico Romântico” (1992). Como o colega Alberto Guzik, do “Jornal da Tarde”, autor do romance “Risco de Vida” e da peça “Um Deus Cruel” – estréia em maio -, Nelson de Sá também se aventura na dramaturgia. Mas por enquanto prefere manter seus textos  na gaveta. 

Curitiba – Aos 52 anos, 47 de teatro, 26 de crí¬tica, o jornalista Alberto Guzik experimenta uma situação nova em sua carreira. Às vésperas da estréia de “Um Deus Cruel”, no 60 Festival de Teatro de Curitiba, prevista para ontem, ele confes¬sou o “frio na barriga” característico dos atores.
Trata-se da sua primeira peça levada ao palco. “Acho que consegui fazer uma coisa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro”, define seu texto. Não é exatamente novidade para quem debutou no romance ano passado, com “Risco de Vida”, também uma futura adaptação de Gerald Thomas – até 98. Dos mais influentes da cena brasileira contemporânea, o crítico do “Jornal da Tarde”, que antes passou pelo “Última Hora”, de Samuel Werner, é ator formado pela atual Escola de Artes Dramáticas da USP, antes Alfredo Mesquita; pós-graduado pela ECA-USP com tese sobre o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). A seguir, Guzik fala das suas expectativas e perspectivas de autor.
O Diário – Do que trata “Um Deus Cruel”? Tem fundo autobiográfico?
Alberto Guzik – Não tem nada de autobiográfico, é um exercício de ficção. Tem a ver com minha vida no teatro. Comecei a fazer teatro com 5 anos, não parei mais. Primeiro como ator amador, depois como estudante de teatro, depois como professor, jornalista, crítico. Quer dizer, efetivamente tenho uma vida no teatro e escrevo obsessivamente sobre teatro. Então não há como não fazer essa experiência derivar quando ponho a escrever sobre teatro, em ficção. Agora, a peça não tem nada que eu pessoalmente tenha vivido. Acontece como em “Risco de Vida”, que tem uma base autobiográfica maior do que a peça, mas mesmo assim acabou sendo pequena, porque acabou uma coisa onde a ficção acabou dominando muito mais amplamente do que qualquer idéia autobiográfica ou coisa parecida. A ficção está na ponta, a ficção invade. É muito poderosa e  isso que é legal, é isso que é divertido.
O Diário – Como foi a transição do crítico para a dramaturgia?
Guzik – Não é uma passagem, é uma soma, um acréscimo; eu continuo crítico, continuo escrevendo crítica e continuarei fazendo isso enquanto eu achar que estou podendo manter a minha isenção e a minha neu¬tralidade em relação aos espetáculos que vejo. O fato de estar me aproximando cada vez mais da prática do teatro não está afe tando esse outro lado. No dia que sentir que ele está sendo afetado eu paro. Acho que dei a minha contribuição para a críti¬ca brasileira, tenho 26 anos de função e acho que já foi um bom exercício. Eu gos¬to do que eu faço não pretendo pa¬rar, mas se um dia sentir que o traba¬lho está sendo afe¬tado pelo exercício da ficção, aí eu vou me afastar, é isso que tem que ser feito. Na verdade, eu acho que o grande salto eu dei quando escrevi o ro¬mance “Risco de Vida”. Desta¬pei um alçapão e deixei sair um ficcionista que estava latente lá dentro, há muitos anos. E a peça é um desdobramento do romance¬, na medida em que nasceu do interesse do Alexandre Stockler do meu romance. Ele ficou mu¬ito interessado pelo livro. Quis fazer uma adaptação teatral, mas ficou sabendo que o Gerald Thomas já estava interessado, que eu já tinha dado os direitos, e  é uma adaptação que vai sair, que vai ser realizada, já estamos ¬conversando sobre isso.
O Diário – Como nasceu “Um Deus Cruel”?
Guzik – O projeto nasceu ano passado, a partir do segundo romance que estou escrevendo, que se chama “Era um palco iluminado”, a história de uma companhia de teatro São Paulo, dos anos 60 aos anos 90 – acho que um período deslumbrante e é a história da minha geração no teatro, acompanha a trajetória de uma companhia ao longo de 30 anos, com saltos no tempo, é claro, senão vai ficar do tamanho do “Em Busca do Tempo Perdido”, do Proust, como oito volumes. Vou ¬fazer um volume só, do tamanho do “Risco de Vida”; umas 500 páginas, e já estou mais ou menos na metade. Quando o Alexandre começou a me sondar para escrever um texto para ele, tinha gostado muito do risco, achei que só ia escrever a peça em 98, quando terminasse o romance, porque tinha material que podia usar, que estava sobrando, algumas variantes de personagens. E daí a coisa cami¬nhou. Houve uma série de coincidências para que a peça surgisse. Tive um computador quebra¬do em Avignon (cidade francesa que abriga um grande festival) no passado, o romance estava no computador, escrevia todo dia. Tentei recuperar o romance – num caderno escrito, mas não consegui lembrar exatamente onde tinha parado, resolvi não arriscar. Então, ficção é feito dança, é uma coisa que requer uma disciplina, você tem que se dedicar àquilo todo dia num determinado horário ou dança. Lembrei-me então de uma conversa com o Alexandre, de que se fossa escrever a peça iria começar com a frase “Como assim”, e alguém respondendo “Como assim?”. Estava na praça de Avignon, num café, e aí abri o caderno e as anotações imediatamente se tornaram falas, personagens ganharam nomes, uma situação de ensaio, um di¬retor brigando com um ator, o a¬tor não entendendo direito o que é que ele faz e a peça começou a nascer, e em dois meses estava pronta a primeira versão.
O Diário – Fale um pouco sobre a história da peça?
Guzik – Uma companhia de teatro, uma garotada que sai da universidade, de uma cidade que presume-se que seja São Paulo. Ao contrário da minha ficção, esta peça não está situa¬da em nenhum momento historicamente muito preciso, mas a problemática dela data dos anos 80 para cá. É uma época sem censura, mas com censura eco¬nômica cada vez maior e que fa¬la das atividades, das dificulda¬des e das maravilhas, de fazer teatro. São cinco atores e um di¬retor que vivem o dia-a-dia de uma companhia. Então, o que o público vai ver são pedaços de ensaios, a mecânica dos ensai¬os, os bastidores, as brigas, os e¬gos, os delírios, as vaidades, as exacerbações, a generosidade, as maravilhas, as derrotas. E a¬cho que consegui fazer uma coi¬sa que queria há muito tempo: uma grande declaração de amor ao teatro.
O Diário – Como é sua relação com a classe artística?
Guzik – Na verdade, não te¬nho amigos íntimos no teatro. Conheço todo mundo, me dou com todo mundo, mas não sou um crítico de fequentar casa. Vou a um jantar quando sou convidado, mas não sou famili¬ar das pessoas do teatro. Não é porque não gosto. Falta tempo. Em geral tendo a dormir mais cedo. Já fui muito de badalação. Tenho que escrever minha fic¬ção, trabalhar no jornal e isso toma muito tempo. Uma boa noite de sono, para ter uma boa manhã de trabalho antes de ir para a redação, porque eu escrevo de manhã antes de sair de casa, não tem o que pague. E muito mais importante que jogar conversa fora num boteco. Adoro atores, adoro diretores, adoro estar no meio deles, não tenho rigorosamente nada contra, ao contrário, mas não sou íntimo das pessoas. Nunca tive um caso de amizade tão grande com um artista que me impedisse de refletir sobre a obra dele. Quer dizer, até hoje tenho conseguido efetivamente manter essa isenção com muita tranquilidade. A crítica é um exercício de poder muito fugaz e a gente tem que saber disso com muita destrez e muita consciência do processo.
O Diário – Você chegou a viver um pouco da fase, pode-se dizer, romântica da crítica, com espaço maior nos jornais em relação ao que vemos hoje. Esse “aperto” não angustia um pouco?
Guzik – Na verdade, a gente aprende a fazer o que tem que fazer. A crítica sempre fez isso, você tem que aprender a se adaptar, o jornalismo mudou, a crítica tem que mudar. Nem eu tenho mais paciência de ficar lendo…Confesso que fiz grandes digressões sobre coisas… Era lindo, era maravilhoso, era o máximo. Você lê as críticas do Décio de Almeida Prado com um prazer extraordinário, o ho¬mem é um dos maiores estilis tas da língua, entre os autores contemporâneos. È admirável a maneira como ele escreve, in¬dependentemente de qualquer outra coisa. O único jeito de vo¬cê fazer crítica é saber que você está lá, para dar a cara pra bater e pra errar. Você erra o tempo todo, é um exercício de erro. A crítica detém um poder completamente ilusório, que é poder nenhum, na verdade você é es pancado de um lado e do outro não tem nehuma regalia, na verdade, com o fato de ser crítico. As pessoas podem achar que tem, mas não há glamour nenhum. E uma responsabilidade do tamanho de um bonde, porque o que você fala pode não levar público nenhum ao teatro, mas mexe pra danar na cabeça do artista. Então você tem que saber muito bem o que você está falando porque não é brincadeira. Acho que minha vantagem nessa passagem, se existe alguma, é que sei como a crítica é feita. Então sei como receber crítica. Já soube como receber crítica, até bordoada no romance “Risco de Vida”, espe¬ro que em “Um Deus Cruel” continue sabendo receber por que vai ser necessário. Vai ter gente que vai gostar, vai ter gente que vai odiar, vai ter gente que não vai com minha cara, então vai ter o maior prazer em revidar. Vai ter de tudo isso. A vida é isso e a gente tem que estar preparado.
O Diário – E como você es¬tá encarando a estréia?
Guzik – Estou nervoso e muito curioso. Torço muito, a cho que tem uma turma jovem, talentosa. Aposto neles. Eles estão apostando na peça. Acho este encontro de gerações maravilhoso. O Alexandre tem 23 anos, eu tenho 52. Acho o máxi¬mo isso que está acontecendo.
A gente está dando uma lição de cooperação porque no Brasil as gerações são tão comportamentadas e o trabalho entre elas tornou-se tão raro que acho que isso pode acontecer, com lucros pa¬ra ambas as partes.
Colaborou Ivana Moura, do “Diário de Pernambuco”, especial para “O Diário de Mogi”. O jornalista Valmir Santos viaja a convite do 6º FTC.
Gerald reencontra Bete Coelho em “evento”
Curitiba – Todo ano é sem¬pre igual. Foi assim, por e¬xemplo, em “Império das Meias-Verdades”, em “Nowhe¬re Man”. Gerald Thomas cercou “Os Reis do lê-lê-lê” de segre¬dinhos. Às 2 horas da madruga¬da da última sexta-feira, dia da estréia, ligou para a assessora de Imprensa do Festival de Teatro de Curitiba comunicando o adi¬amento para ontem.
Na entrevista coletiva, na tarde de quinta, já adiantava problemas com a preparação do palco e outros detalhes técnicos. “Mas o evento está pronto”, ga¬rantia após 12 dias de ensaios. “Com 53 espetáculos nas cos¬tas, 20 anos de teatro, é preciso muita razão para tomar a decisão de estrear num palco que a organização prometeu entregar na terça-feira e já está atrasado em pelo menos 36 horas”, se queixava Thomas, justificando com antecedência o adiamento.
É “evento” e não peça que marca o reencontro, cerca de seis anos depois, de Thomas com Bete Coelho, ex-primeira-atriz da Companhia de Ópera Seca. Nos últimos anos ela seguiu carreira paralela, atuando em “Rancor” e “Pentesiléias” – esta há dois anos, dividindo a direção com Daniela Thomas.
Também estão no elenco Lu¬iz Damasceno, na Ópera Seca desde o início, 11 anos atrás, e Domingos Varella; Raquel Riz¬zo, curitibana que vem desde “Unglauber”; mais o polêmico diretor e ator Dionísio Neto (“Opus Profundum” e “Perpé¬tua”) e sua primeira-atriz Rena¬ta Jesion.
Ao contrário das aparições em espetáculos anteriores, desta vez Thomas veste efetivamente a camisa de ator. “Não sou ator, mas faço papel do Gerald Tho¬mas”, ironiza. Ele define seu “evento” – que além das duas apre¬sentações no festival deve ter somente mais uma em São Pau¬lo – como um “laboratório de clonagem”.
“Não simplesmente genéti¬ca, como no caso da ovelhinha, mas clonagem semântica”, tenta explicar.
Para Thomas, a contracultu¬ra pós-anos 60, que contestava o behaviorismo, o comportamen¬to diante da sociedade, desem¬bocou “nesta ignorância, boba¬geira que começou com ‘she’s love yeah, yeah”’, na sua opini¬ão “o mais imbecil de todos os refrões”.
“Os Reis do lê-lê-lê” é uma crítica ao mundo pop, do qual os Beatles foram ícone? Sim e não. Em princípio, o “evento” não pretende dizer muito sobre os rapazes de Liverpool. Apropria-se dos nomes – Thomas é Len¬non, Bete Coelho, McCartney – e de algumas canções na trilha. Mas o encenador, que diz ter le¬vado “porrada” em Londres por não gostar do Beatles e amar os Rolling Stones, no tempo em que morou por lá, prefere desta¬car mais o “prazer do reencon¬tro” com a atriz com quem vi¬veu um affaire de quatro anos.
Em tese, não existe um fio. A sinopse que entregou para di¬vulgação, o próprio diretor con¬fessa, tem pouco ou nada a ver com o que será visto no palco. A mutação é uma das característi¬cas deste “obcecado pela for¬ma”. Thomas adora as coisas feitas pelo Homem, a beleza concreta das cidades, e dispensa as providências da natureza. Ve¬nera o asfalto, o pneu e está pre¬ocupado com quem dirige o car¬ro.
Sobre desperdiçar um bom elenco para apenas duas ou três apresentações, Thomas aponta a “efemeridade” do teatro. “Tanto faz dias ou meses”. O próximo trabalho no Brasil será em agosto, com a companhia de dança Primeiro Ato, de Belo Horizon¬te. Depois da experiência – e das divergências – com o bailarmno e coreógrafo Ivaldo Bertazzo, pa¬rece ter tomado gosto pelo mo-vimento.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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