O Diário de Mogi
31.8.1997 | por Valmir Santos
O Diário de Mogi – Domingo, 31 de agosto de 1997. Caderno A – 4
Monólogo traz escritor na prisão repudiando a sociedade que o condenou
VALMIR SANTOS
São Paulo – O fantasma do irlandês Oscar Wilde (1854-1900) continua puxando a coberta das seciedades hipócritas e ditas puritanas. Há 102 anos, o escritor irlandês foi julgado e condenado a trabalhos forçados por comportamento “pervertido e homossexual”. Até os dias de hoje, a sentença histórica serve como símbolo da luta pela liberdade sexual. “Oscar Wilde”, o monólogo interpretado por Elias Andreato, expõe uma “carta” do autor de “O Retrato de Dorian Gray” despachada ao seu amante e, mais abrangentemente, à sociedade que condenou.
Despachada entre aspas. Wilde nunca a enviou. Lorde Alfred Douglas, ou Bosie, como tratava o jovem por quem se apaixonou, faltou com a reciprocidade quando o caso desse “amor que ousa dizer seu nome” veio à tona. Chegaram ao conhecimento do marquês de Queensberry, pai daquele belo rapaz, correspondências na qual o remetente tecia loas ao destinatário do tipo “Tu és a coisa divina que eu desejo”.
Foi um escândalo para a época. Julgado numa Londres monarca, meca do conservadorismo de então, Wilde não teve atenuante. Ainda mais porque dono de língua afiadíssima, tão cruel e espantosamente sensata com as vicissitudes humanas (leia, nesta página, diálogo indefectível com o promotor). Custou-lhe dois anos vendo o sol nascer quadrado, submetido a trabalho forçado.
No monólogo em cartaz na ironicamente intitulada Sala Vitoriana, do Stúdio Cristina Mutarelli – um novo, pequeno e aconchegante espaço na Capital -, temos a palavra de Wilde embalsamada pelo corte refratário às regras de uma falsa moral.
Em menos de uma hora, as frases se amontoam e parecem não caber mais no palco/cela diminuto. O público de cerca de 20 pessoas, lotação máxima, espia as deduções cristalinas de Wilde quanto ao que há de mais comezinho numa relação opressora.
Frasista contumaz, o autor de “A Importância de Ser Prudente” e “Salomé”, estilhaça com lascívia e sem complacência. Exemplos:
“Nunca adorei ninguém, a não ser a mim mesmo.”
“Porque todos os homens matam o que amam mas nem todos morrem por amor?”
“A arte só começa onde termina a imitação.”
“Estamos no país dos hipócritas.”
“A arte não deve aspirar ao público; é o público quem deve aspirar à arte.”
“Eis o resultado de tê-lo enviado uma carta.”
São algumas das muitas frases jorradas por uma interpretação intensa de Elias Andreato. Ele domina o timming de cada fala. Se relaciona tranqüilamente com o pouco espaço que divide com uma poltrona, uma taça de alumímo, um varal… O ator, que vem de outro monólogo implacável, “Van Gogh”, no qual mergulhava fundo na loucura sã, volta a atingir o equilíbrio neste “Oscar Wilde”, desta vez não necessariamente com tanta introspecção. Afinal, Oscar Wilde era de uma elegância de um dândi.
Viven Buckup, a preparadora corporal que vem se dando muito bem na direção (“Para Sempre” e “Cenas de Um Casamento”), consegue aqui, mais uma vez, desfocar a montagem da figura predominante do diretor. Quanto menos aparece, mais se percebe o trabalho de Vivien, que parece dialogar com tranqüilidade com seus atores.
Atuação e texto harmonizam de tal forma que resta a limpidez do verbo ecoando nas quatro paredes – contando a imaginária. Quando mede o tempo pelo “latejar da dor”; quando condena a superficialidade das relações, sejam heteros (o casamento com Constance, aos 30 anos, foi para ele uma decepção) ou homossexuais; quando condena a unanimidade burra da opinião pública; quando ridiculariza a imprensa sensacionalista; enfim, quando raspa lá dentro de si para transformar bílis em poesia, Oscar Wilde, via Andreato, não reivindica outra coisa que não a supremacia do belo sobre o sofrimento – aquele como conseqüência deste.
Uma ode à condição de artista numa época tão adversa – época que se reproduz em novos códigos, de quando em quando -, “Oscar Wilde”, o monólogo, lapida a emoção com poder arrebatador de transferência. O autor, o ator e a cenografia do talentoso Namatame suspendem o tempo e o espaço e transpõem o espectador para aquele lugar nenhum em que o pensamento é banhado pela luz e pelo silêncio.
Oscar Wilde – Adaptação e interpretação de Elias Andreato. Direção: Vivien Buckup. Sexta e sábado, 21h30; domingo, 20h. Studio Cristina Mutarell (avenida Nove de Julho, 3.913, Jardim Paulista, tel. 885-7454). R$ 15,00. 20 lugares. Até 28 de setembro.
‘O Homem e a Mancha’ leva à introspecção
São Paulo – Caio Fernando Abreu, um dos nomes mais importantes da literatura brasileira contemporânea, autor de “Morangos Mofados”, também se inclinou para o campo da dramaturgia. Faz pouco tempo, estava em cartaz na Capital “A Maldição do Vale Negro”, um melodrama. Antes de morrer, em 1995, ele deixou pronto “O Homem e a Mancha”, monólogo interpretado agora por Marcos Breda, sob direção de Luiz Arthur Nunes, ambos conterrâneos e amigos de Abreu.
Morto em decorrência da Aids, o autor consegue exorcizar a doença sem mencioná-la. Prefere enveredar pelos labirintos da literatura, especificamente da dramaturgia, para produzir um texto que diz respeito ao momento pelo qual estava passando. “O Homem e a Mancha”, ao mesmo tempo, constitui um exercício instigante de introspecção.
Abreu remove a máscara e pede um ator despido de personagem. A história começa assim. Aos poucos, o ator, no caso Breda, ingressa no universo de Miguel Quesada, agora sim no plano da ação propriamente teatral. Quesada é um aposentado que abdica de viver e decide se manter recluso em sua casa – um distanciamento comparado a Proust ou Onetti, citados inclusive. Romper com o mundo lá fora é o cúmulo da interiorização; do voltar-se para si como única forma de manter-se agarrado ao fio da vida que resta.
O movimento de Quesada, um delírio em que tempo e espaço se deslocam a todo instante, deixa explícito a convivência de Caio Fernando Abreu com a doença. As crônicas, publicadas no jornal “O Estado de S. Paulo”, prenunciavam o transbordamento da sensibilidade.
Não, “O Homem e a Mancha” não é uma efeméride. Possui estrutura dramatúrgica, traz no cerne um libelo à arte da interpretação – o ator perde sua neutralidade para o personagem, e depois a recupera ao final; mas nunca se sabe onde começa uma ou termina outra.
Marcos Breda tem um desempenho comovente, uma entrega total ao texto. Com toda a pobreza dos recursos de cenografia e iluminação, à la Eugênio Barba, sobrepõe-se o seu trabalho de interpretação. Na Sala Minam Muniz do Teatro Ruth Escobar, o espaço pequeno empresta maior visceralidade na aproximação com o público.
O diretor Luiz Arthur Nunes pretende esse despojamento, como indica o espírito da obra de Abreu. Nessa pulsão onírica, em que vírus e imaginação se confundem, “O Homem e a Mancha” confessa a necessidade do outro. A chance de compartilhar com familiares e amigos, principalmente com a criação literária, foi um alento para o escritor e dramaturgo gaúcho.
O Homem e a Mancha – Sexta, 22h; sábado, 21h; e domingo, 20h. Teatro Ruth Escobar/Sala Miriam Muniz (rua dos Ingleses, 209, Bela Vista, tel. 289-2358). R$ 15,00. Até 28 de setembro.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.