Folha de S.Paulo
19.5.2005 | por Valmir Santos
São Paulo, quinta-feira, 19 de maio de 2005
TEATRO
Em “Antígona”, que pré-estréia hoje, diretor põe deus Baco para reger a luta por liberdade no espaço da morte
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
O caixão é um objeto recorrente na obra de Antunes Filho. De “Romeu e Julieta” (84) a “Drácula e Outros Vampiros” (96), passando por “Vereda da Salvação” (93), estão lá os cadáveres da aventura humana em que procura converter todo o seu teatro.
Em “Antígona”, que pré-estréia hoje no Sesc Anchieta, em São Paulo, o diretor “ressuscita” os personagens. Os corpos do rei Creonte e das irmãs Antígona e Ismene são retirados das gavetas de uma espécie de mausoléu e trazidos à cena.
Na peça de Sófocles (século 5º a.C.), a protagonista, por ordem de Creonte, é impedida de enterrar o corpo de seu irmão, Polinices, morto em duelo com outro irmão, Etéocles. Antígona transgride a lei e é condenada a ser enterrada viva numa caverna.
Na perspectiva de Antunes, há um deus a guiar esse enredo: Dionísio (ou Baco, em latim). De seu nicho, à esquerda do palco, ele dispara a sirene, os sinos. E também contracena, um tanto cabisbaixo, como a alertar que os tempos não são de alívio.
A seguir, trechos da entrevista de Antunes à Folha.
Folha – Quando Creonte discursa preocupado com os rumos de Tebas…
Antunes – Há um certo altruísmo nisso…
Folha – Ele está preocupado com as raízes amaldiçoadas da família de Antígona, fala em preservar a nação.
Antunes – Ele está preocupado com as responsabilidades, mas esse altruísmo é perigoso, é assassino. Os grandes fascistas que existem no mundo são altruístas, de certa maneira. Tenho medo de qualquer tipo de altruísmo.
Folha – O mausoléu cenográfico é, ao mesmo tempo, o espaço da morte, da memória e do museu?
Antunes – É tudo isso. E também o espaço do inconsciente, do porão. Não é acrópole [local mais alto das antigas cidades gregas], é necrópole [cemitério].
É bonita essa idéia de que Baco está sempre representando em “Antígona”, retirando as pessoas dos seus caixões e lhes dando vida para representar. São os arquétipos. Eu gosto muito da sirene que ele dispara. É um alerta. “Gente, acorda, acorda, estamos em perigo!” É uma espécie de despertador. Já usei isso em “Nelson Rodrigues, o Eterno Retorno” [81].
Folha – Aliás, há vários signos que retornam em sua obra. Como a movimentação do coro, o uso de chapéu, os caixões…
Antunes – A turma fala das minhas marcas. Adoro guarda-chuva, por exemplo [foi descartado em “Antígona”]. Não o uso apenas como elemento estético, mas dramático, psicológico. Eu gosto de abafar o drama, pôr em ebulição. Dá mais intensidade interior. Não é por esteticismo babaca.
Folha – Você diz que quer fazer “Antígona” para a molecada. Como pretende sincronizar o tempo acelerado do jovem com o clássico?
Antunes – Quero que o jovem se interesse. Não cortei uma metáfora, não soneguei nada. Vai ser ótimo. Ele vai ver Creonte de um lado e Antígona de outro. São duas línguas. É a verdadeira dialética que o jovem precisa aprender. Os valores estão aqui e lá. Não é falar: “Isso está certo, isso está errado”. Pode até torcer por um lado, mas tem que ser dialético. Eu não consigo fazer uma coisa que não tenha um profundo sentindo humano. A discussão sobre a aventura humana, isso me interessa, eu gosto. Fora disso, é bobagem.
Folha – Você sempre bateu na tecla da voz em cena. Qual o estágio?
Antunes – É uma questão técnica dos atores. Eles são flautas falando a língua portuguesa, que é tão bonita. A tragédia é “mélos”, você não concebe tragédia sem melodia, sem música. A língua portuguesa é muito maltratada. Criamos uma série de exercícios para chegar onde estamos. Isso pode ser chamado de método, mas não quero consagrá-lo, quero que o método se dane. É muito mais importante os atores terem uma cultura de futuro, porque vou morrer uma hora e eles é que têm que passar isso adiante. No Brasil, sempre se falou da cultura da projeção de voz. Não quero mais a projeção, quero a ressonância.
O que você acha mais importante, um espetáculo meu ou esse tipo de cultura que dou aos atores? As pessoas cobram uma coisa, eu estou em outra. O espetáculo acaba, tchau. A cultura fica.
Folha – “Fragmentos Troianos” [99], “Medéia” [2001/2002] e agora “Antígona”. Essa trilogia foi traçada intencionalmente? A primeira tinha como pretexto o crescimento dos conflitos étnicos; a segunda retratou a potência da mãe natureza diante das devastações causadas pelo homem…
Antunes – E esta fala de liberdade. No final, os atores vão fazer o agradecimento com a “Nona Sinfonia”, de Beethoven. Eu não tinha traçado isso. Queria era sair do complexo de inferioridade que nós, brasileiros, temos no teatro. Podíamos fazer teatro, menos tragédia, porque não sabíamos. Não temos cultura trágica, como fazer? Tanto que comecei a ensaiar diversas vezes, com elenco bom, e não saía do lugar porque a voz emperrava. Devagar, com os anos, fomos aprendendo. “Fragmentos” ainda era um drama. O fato em si era trágico, mas a forma, não. “Medéia” foi mezzo alichi, mezzo mozarela, mas já tendia para a tragédia. Com “Antígona”, eu digo, puxa vida, é agora: acho que já dá para dar um passo, sair do meu complexo brasileiro de inferioridade cultural.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.