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Folha de S.Paulo

Paulo Autran reencontra Molière

15.8.2006  |  por Valmir Santos

São Paulo, terça-feira, 15 de agosto de 2006

TEATRO 

Prestes a completar 84 anos, ator escolhe “O Avarento”, 90ª peça da carreira e quarta do comediógrafo que interpreta
 

Dirigido pela primeira vez por Felipe Hirsch, ele sobe ao palco do Cultura Artística; cenário recria ambiente teatral do século 17
 

VALMIR SANTOS

 Da Reportagem Local

“É uma peça para ressaltar as máscaras dos atores, a expressão facial”, adianta Daniela Thomas. No gigantesco palco do teatro Cultura Artística (1.156 lugares), em São Paulo, ela deslocou a cenografia praticamente para o proscênio, onde o público verá um Paulo Autran maquiado como as últimas gerações nunca viram. 

Também o recurso da ribalta (fileira de refletores, antigamente velas, ao nível do palco, na dianteira), como nos tempos de Molière, no século 17, conforme releitura do diretor Felipe Hirsch, reforça ainda mais a dramaticidade de Harpagon, o protagonista de “O Avarento”. 

“Ele é tão fanático por dinheiro que fica muito engraçado. Pessoalmente, ele sofre muito, o tempo inteiro, mas o sofrimento dele é cômico”, afirma Autran, 84 anos no próximo dia 7 de setembro. 

Dos mais clássicos intérpretes brasileiros (estreou profissionalmente no Teatro Brasileiro de Comédia em 1949), ele andava com saudade dos autores clássicos. Pela quarta vez na carreira, recorre ao comediógrafo francês Jean-Baptiste Poquelin, o Molière (1622-1673), de quem já levou ao palco “O Burguês Fidalgo”, nos anos 60; “As Sabichonas”, nos anos 60; e “Tartufo”, nos anos 80. 

Metido em ceroulas impagáveis, sem a peruca molièresca sugerida pelo material publicitário da peça, Autran desponta em cena numa tarde de ensaio com a altivez de quem está diante do fotógrafo alemão Fredi Kleemann (1927-1974), dos tempos de TBC. Foi com ele que, como muitos colegas, aprendeu a congelar a expressão do olhar e do gesto, como o fez diante do repórter-fotográfico da Folha

Paulo Autran anuncia “O Avarento” como a 90ª peça em 57 anos de carreira, descontados os dois primeiros anos da fase amadora. Convidou Hirsch a dirigi-lo pela primeira vez. O diretor da Sutil Companhia de Teatro tem 34 anos, quase 50 a menos. Autran gosta de trabalhar com jovens criadores, a exemplo de Eduardo Tolentino de Araújo, do grupo Tapa, e Paulo de Moraes, da Armazém Cia. de Teatro. 

Reconhece assim tangenciar o risco. “Às vezes, o diretor muito moço, fascinado pela sua própria autoridade, capacidade, inventa coisas que só prejudicam o andamento do espetáculo”, afirma o ator. Normalmente, é ele quem adapta os textos, mas delegou a atual tarefa ao próprio Hirsch. “A melhor comédia é aquela a que você assiste com uma lágrima no olho”, dizia o teatrólogo britânico Bernard Shaw. 

Hirsch lança mão da frase para apontar as entrelinhas que deseja vislumbrar no texto sobre a triste figura de Harpagon. 

O diretor e Daniela Thomas, falam em “poesia da exaustão”, conceito que nasceu na primeira onda de ataques do PCC em São Paulo, em maio. 

“É exaustivo eternizar poesia num mundo, num país, numa cidade sitiados”, diz Hirsch. “É como se Autran e uma trupe de atores atraíssem o público para um bunker, o teatro.” 

No cenário, ergue-se uma parede com caixas de papelão das quais os atores saem no início do espetáculo, como se encaixotados. Aos poucos, parte da estrutura vai-se desmontando e deixa vazar pelas frestas e “janelas” um fundo com telão de época a representar um céu azul entre nuvens. 

Moedas
Além do “bunker”, a cenografia guarda relação com a caixa de moedas que o obsessivo Harpagon enterra em seu jardim, alvo de muitos qüiproquós. Idem para os imóveis envolvidos em plásticos, de modo que durem o máximo. No apego a bens materiais e ao dinheiro, o ordinário arranha a relação com os filhos, empregados e todos os que o rodeiam. 

Elisa e Cleanto têm que driblá-lo o tempo todo para conquistar seus amores e não contrariar o pai, sempre de olho nos dotes dos interessados na prole. Acrescente-se uma alcoviteira, um agiota e um criado e, pronto, eis a comédia à la Molière. “Num certo sentido, Harpagon se parece muito com alguns políticos que a gente conhece”, diz Autran. 

Ele atua ao lado da sua mulher na vida como ela é, Karin Rodrigues, no papel da alcoviteira Frosina (“As pessoas como eu têm apenas, como rendimento, a intriga e a astúcia”, diz a personagem); e do amigo Elias Andreato, que o dirigiu em “Visitando o Sr. Green” (2000) e “Adivinhe Quem Vem para Rezar” (2005), na pele do criado Flecha. 

Também estão em cena Gustavo Machado e Cláudia Missura, nos papéis de filhos, e Luciano Schwab, Tadeu Di Pyetro e Arieta Corrêa, atriz que deixa o CPT de Antunes Filho após seis anos. 

“Todo mundo começou pelo mesmo tipo de paixão, só que em épocas diferentes. Se a gente aciona essa paixão, todos os traumas, limites, dúvidas tendem a diminuir”, diz Hirsch. “É aí que a linguagem do Paulo se encontra com a do Felipe. Quero ficar próximo do amor que o Paulo tem pelo teatro.”



O Avarento
Quando:
pré-estréia beneficente qui., às 21h; estréia sáb., às 21h; de qui. a sáb., às 21h, e dom., às 18h 
Onde: teatro Cultura Artística – sala Esther Mesquita (r. Nestor Pestana, 196, tel. 0/xx/11/3258-3344) 
Quanto: de R$ 30 a R$ 80 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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