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Folha de S.Paulo

Com tragédia em cena, Folias completa 10 anos

27.5.2007  |  por Valmir Santos

São Paulo, domingo, 27 de maio de 2007

TEATRO

Cia. levanta questões atuais ao levar à cena julgamento da trilogia de Ésquilo
 

Companhia completa dez anos e, sob direção de Marco Antonio Rodrigues, retoma idéia antiga de encenar texto grego do século 5 a.C.

VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local 

O Folias d”Arte chega aos dez anos como no início: em crise. E isso é bom. Empurra o grupo para um antigo projeto: levar à cena uma obra-prima da tragédia grega, a trilogia “Orestéia”, de Ésquilo, que estreou nesta semana no galpão de Santa Cecília (região central). 

Escritas e apresentadas conjuntamente pela primeira vez no século 5 a.C., as peças “Agamêmnon”, “Coéforas” e “Eumênides” foram encenadas no século 20 pelo alemão Peter Stein e pela francesa Ariane Mnouchkine, para citar dois nomes. No Brasil, a iniciativa é rara. Conta-se uma releitura por Cristiane Paoli-Quito e sua Troupe de Atmosfera Nômade, em 1993, mas nada equivale à aventura na qual o Folias embarca, de quinta a domingo, durante três horas e meia. 

A “Orestéia” narra a saga dos Atridas, desde a partida do rei Agamêmnon para a conquista de Tróia até o julgamento de Orestes em Atenas, pela morte de sua mãe, Clitemnestra. 

Compreende o período de constituição do Estado grego e sua passagem do matriarcado ao patriarcado. O julgamento de Orestes por um tribunal formado por cidadãos estabelece a justiça dos homens em substituição à dos deuses. 

O Folias toma o fórum arquetípico do Ocidente, acusação-defesa, para questionar a si próprio, a arte do teatro na sua cidade e a história recente do país. Para o diretor Marco Antonio Rodrigues, o mesmo da bem-sucedida tragédia “Otelo” (2003), de Shakespeare, um dos desafios em Esquilo é dar conta da questão dialética. 

“A gente está acostumado a uma moralidade epicurista, positivista, cristã, de sim e não, de preto e branco. A leitura do simbólico está desmontada em todos os níveis. É isso que permite colocar Racionais MC’s no meio da madrugada na praça da Sé e depois dizer que [a violência] é coisa de crioulo, de pobre. É isso que permite trocar Fernando Henrique por Lula e tudo continuar na mesma”, diz Rodrigues, 51. 

Na adaptação do dramaturgo Reinaldo Maia, há correlações com a memória brasileira, pistas para situar o espectador. 

“Agamêmnon”, de estrutura trágica pura, travessia mais difícil, evoca os anos 50 e 60, quando se instala a ditadura em nome da democracia. 

“Coéforas”, um “drama trágico”, segundo Rodrigues, é o momento da luta pela restauração da democracia e volta dos exilados. Após o intervalo, “Eumênides”, uma “comédia trágica”, corresponde ao processo político que promete a liberdade, a restauração do poder ao povo, mas consagra “esperteza” das elites, no dizer do diretor. 

Atílio Beline Vaz, Carlos Francisco, Dagoberto Feliz, Nani de Oliveira, Patrícia Barros e mais sete intérpretes mergulham em teatralidade radical, como a Folha viu no ensaio, até para expor armadilhas do ilusionismo dramático. 

“E para que serve o teatro, senão para afundar o pé em algumas coisas? Do ponto de vista das outras técnicas reprodutivas, essa possibilidade fica mais contida, por causa das exigências industriais. Se a gente detém os meios de produção, o mínimo a fazer é falar daquilo que sofremos.” Sofrer e aprender, como riscou Ésquilo. 



Orestéia – O Canto do Bode
Quando: de qui. a sáb., às 20h, e dom., às 19h; até 28/10 
Onde: teatro Galpão do Folias (r. Ana Cintra, 213, tel. 3361-2223) 
Quanto: R$ 30 

 

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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