Folha de S.Paulo
20.10.2007 | por Valmir Santos
São Paulo, sábado, 20 de outubro de 2007
TEATRO
VALMIR SANTOS
Da Reportagem Local
M ais importante projeto do ano teatral em São Paulo, a temporada de “Os Efêmeros”, pela cia. francesa Théâtre du Soleil, com ingressos esgotados, estimula público e artistas a repensar seus papéis nessa arte.
O espetáculo integral dura oito horas e compreende não só a cena, mas sua órbita. Assim que chega, o espectador caminha até uma das duas platéias, leste ou oeste. Escolhe um lugar, retira o adesivo com o número do respectivo assento e o cola no ingresso. Livre-arbítrio. Antes do início, pode-se ir ao bar comprar pratos feitos pelos próprios integrantes do Soleil. No intervalo, a demanda é maior e convém paciência.
Os artistas que servem a comida não estão preocupados em ser garçons de fast-food. Muita gente vai bufar, mas eis a chance para resgatar a percepção dos tempos do outro e de si. O ato de comer agrega. A ambientação inclui mesas retangulares de madeira e bancos longos, em conformação que coloca o comensal de frente para o outro. Toalhas, velas, aroma dos pratos, fundo musical, tudo envolve a todos. O camarim é aberto.
Em sua cosmogonia peculiar, o Soleil reafirma ideais socializantes, mesmo ao tecer universos particulares. Após montagens apoiadas em narrativas épicas de conflitos vividos por outros povos, a cia. volta-se para seu corpo e memória. Expõe fragmentos pessoais dos intérpretes numa dramaturgia de embarque e desembarque por épocas e lugares.
Às vezes, parece que o trem sai dos trilhos pelo descomedimento, ausência de uma cabeça exterior que represe tantas emoções e comoções. Mas é sensação também passageira. Na subversão ao relógio, “Os Efêmeros” concilia emoção e consciência de mundo. Há uma sincera beleza em lidar com esses estados interiores, até como documento histórico da humanidade em seus dramas, tragédias e comédias. O teatro é consagrado em sua menor grandeza, como na minúcia dos objetos nas plataformas que deslizam sobre rodinhas ou no brio dos artistas que as empurram, protagonistas na coreografia e no olhar tanto quanto os colegas que atuam em cima dos tablados.
Sob a perspectiva do teatro paulistano atual, o Soleil também diz muito. O modo de produzir é tão radical quanto o do grupo Oficina, por exemplo. A escala monumental lembra a perseverança do Vertigem. O naturalismo de cena em “Os Efêmeros” deixa entrever ainda a que ponto chegaria o “Prêt-à-Porter” do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) se o projeto fosse redimensionado com mais fé e risco. Por isso, mas não só, a primeira turnê da companhia pela América do Sul em 43 anos é, desde já, memorável.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.