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A produtividade febril e a experiência relativa [aParte XXI]

6.1.2011  |  por Valmir Santos

(Artigo originalmente publicado em aParte XXI – Revista do Teatro da Universidade de São Paulo, (2° sem. 2010, pp. 151-161). A publicação do TUSP loi lançada em 1968, teve duas edições quando o órgão era dirigido pelo cenógrafo Flávio Império, uma terceira abortada, e é retomada sob coordenação editorial de Celso Frateschi, Ferdinando Martins e Deise Abreu Pacheco,  mais projeto gráfico de Fábio Larsson e desenhos de Simone Mina).


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Por Valmir Santos

 

No prólogo do espetáculo Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer, de 2009, a Companhia São Jorge de Variedades bate à porta do Theatro São Pedro, à luz do dia, e lança ao espectador ou transeunte algumas poucas certezas antepostas às dúvidas hamletianas conforme reza o dualismo ocidental. A performance na calçada coloca a representação em xeque. “Minhas palavras já não me dizem mais nada. Os meus pensamentos sugam o sangue das imagens. O meu drama não se realiza mais”, diagnostica a figura vestida de preto que carrega uma mala e faz às vezes de cicerone do público pela paisagem da Barra Funda. O bairro da zona oeste é um dos redutos tradicionais da imigração italiana que ali residiu e trabalhou em fábricas e indústrias a partir da segunda década do século XIX, como evidencia parte dos galpões desativados.

 

Embicado numa esquina, o Theatro São Pedro chama a atenção pela fachada em linhas arquitetônicas neoclássicas com elementos art nouveau (cf. Serroni, 2002). Inaugurado em 1917, este mesmo edifício que abrigou o processo de criação e a estreia antológica de Macunaíma, em 1978. A adaptação e direção de Antunes Filho para a rapsódia de Mário de Andrade inscreveu o Grupo Pau Brasil na historiografia teatral (depois Grupo de Teatro Macunaíma) e circunscreveu definitivamente a pesquisa cênica ou dramatúrgica no território brasileiro, o pendor à experiência em contraste com produções digeríveis nas escalas de elenco, na acepção de texto e na definição de conteúdo.

 

Aproximar os espaços de dentro (Grupo Macunaíma) e de fora (Companhia São Jorge) em diferentes épocas do Theatro São Pedro é a maneira que encontramos para ler a década zero zero do século XXI. Num arco de 31 anos verificamos, de um lado, os subsídios da então Comissão Estadual de Teatro, da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, que permitiam a Antunes Filho ministrar curso para atores, alguns iniciantes, e mergulhar na aventura do herói sem caráter; e de outro lado, o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, vinculado à Secretaria Municipal de Cultura, que selecionou a Companhia São Jorge em pelo menos cinco editais desde a promulgação da lei em 2002.

 

Passado e presente constituem exemplos bem acabados de como a arte e a cultura podem e devem ser transformadas por políticas públicas – modelo sacramentado em países europeus – e incidir sobre os modos de produzir, criar e recepcionar o teatro. Por isso é revelador saber que antes de Antunes Filho vincular-se ao Serviço Social do Comércio, em 1982, parceria profícua até hoje, ele teve a oportunidade de ocupar um espaço público e desenvolver um curso permanente. Driblando, inclusive, as estruturas administrativas distintas de dois governos estaduais sob ditadura militar: Paulo Egídio Martins (1975-1979) e Paulo Salim Maluf (1979-1982). As atividades pedagógicas e experimentais aconteceram durante cerca de quatro anos nas dependências do São Pedro, a partir de 1978. O curso foi logo batizado de Centro Teatral de Pesquisa, um embrião do que viria a ser o Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, um departamento do Sesc SP instalado na unidade Consolação (cf. Milaré, 2010).

 

Os argumentos que Antunes põe no papel para convencer a Comissão Estadual de Teatro e sua presidente, Amália Zeitel, a apoiar seu projeto algo visionário e fora do padrão coaduna as premissas da Lei de Fomento e o espírito do teatro de grupo. O diretor ambiciona “um centro catalisador para desenvolver pesquisas e experimentações, sem se ater aos padrões estabelecidos pela maioria das escolas de teatro brasileiras”, como se lê no artigo e manifesto Método de trabalho, publicado no programa do espetáculo Nelson Rodrigues, o eterno retorno, de 1981, e assinado pelo Grupo de Teatro Macunaíma:

 

A formação dos elementos do grupo se daria levando em conta dois fatores fundamentais: os estudos teóricos e sua subsequente transferência para o palco sob a forma de exercícios, convergindo ambos para um objetivo comum, qual seja a persistência em desestruturar todo o trabalho concretizado em função das novas possibilidades que ele próprio despertaria. Aí residia uma das atribuições básicas segundo a qual o grupo se moveria e se transformaria num dos eixos fundamentais da sua filosofia: colocar-se em situação a cada instante da criação, fazendo tabula rasa do conhecimento anterior e jogando-se para os estágios futuros sem nenhuma espécie de pré-concepção. (Milaré, 2010, p. 59)

 

O artigo primeiro da Lei 13.279, de 8 de janeiro de 2002, afirma que o objetivo do Programa Municipal de Fomento ao Teatro é “apoiar a manutenção e criação de projetos de trabalho continuado de pesquisa e produção teatral visando o desenvolvimento do teatro e o melhor acesso da população ao mesmo”. A pesquisa é entendida como as práticas dramatúrgicas ou cênicas, segundo convém à filosofia de trabalho no CPT. Mal passara o terceiro ano de vigência da lei que instaurou novos parâmetros, Antunes critica as comissões de seleção formadas a cada edital: “O compadre vai falar mal de compadre?”, ele questiona em entrevista publicada no jornal Folha de S.Paulo e desencadeadora de mal-estar no meio artístico (Santos, 2004).

 

Um olhar retrospectivo ajuda a interpretar a reação idiossincrática de Antunes ao não absorver aquela passagem histórica decorrida do movimento artístico-cultural Arte contra a Barbárie, “um marco nas políticas públicas de cultura da cidade e até mesmo do país” (Costa & Carvalho, 2008, p. 149). O episódio denota o quão é diversa e complexa a fruição estética. Os anos 2000 mostram ser mais rara a gravitação em torno de um criador, um grupo, escola, movimento ou sistema de interpretação, de dramaturgia ou de encenação. Uma tendência na contramão dos anos 1980 e início dos 1990, quando o princípio da hierarquia é dominante e, portanto, “o encenador passa a construir um discurso autônomo em relação ao texto dramático, usando uma série de elementos que compõem no palco uma escritura cênica” (Fernandes, 2010, p. 3). A aura ensimesmada do criador é deslocada, aos poucos, para uma atitude relacional. Abre-se ao coletivo redimensionado na autoria partilhada com todas as funções da equipe, com os pares, com o lugar e com o espectador, esse coautor cada vez mais instigado na cena brasileira.

 

A rigor, a Lei de Fomento tem mais simbiose com o pensamento criativo disseminado pelo CPT do que talvez possa supor o seu idealizador. A série Prêt-à-porter, lançada em 1998 e amadurecida ao longo da década que entrou, opta por procedimentos que reveem o próprio papel de Antunes Filho como diretor, escudando-o na função de coordenador. Para além do jogo semântico, o discurso é delegar tudo aos atores. No caso, a duetos que se anunciam emancipados na proposição da gênese a ser narrada/interpretada e nas consolidações da dramaturgia, da interpretação, dos figurinos e do espaço cênico sob luz invariável e branca. Um choque de percepção para a crítica e o público acostumados à forte assinatura espetacular na dança do espaço vazio com os movimentos corais e, de quando em quando, os arroubos na conjugação da cenografia com o desenho de luz.

 

Nessa mesma perspectiva, afastar-se do palco convencional do Teatro Anchieta, no térreo, e levar o espectador para a sala de ensaio no sétimo andar do Sesc Consolação é um gesto sincrônico à produção da cidade que passou a pisar outras territorialidades. O templo outrora indevassável do CPT abre suas portas sempre em horário alternativo, diga-se, convertido em teatro de câmara para setenta pessoas alinhadas em três fileiras enquanto dois atores contracenam como que rentes ao público e à parede cenográfica. É no ventre desse vão horizontal que se dá a depuração em busca do essencial em partituras rigorosas na ação física, na eleição das palavras, no extrato poético da cena naturalista à maneira oriental.

 

Aliás, atribuímos ao lastro do ciclo paralelo Prêt-à-porter o fator decisivo para a montagem que sintetiza a década antuniana em termos de oxigenação de linguagem. Foi Carmen, de 2005 e remontado anos depois, resulta uma celebração a Kazuo Ohno via Carmen Miranda. Costura o teatro e a dança com uma síntese arriscada de mitos e arquétipos que demandam repertório gestual e espacialidade alentadores.

 

Esses momentos lapidares são mais prováveis quando o artista tem condições estruturais para tanto. Faz 28 anos que Antunes pesquisa com o esteio do Sesc. Antes de incorporar o CPT, a entidade, ainda impactada pela repercussão nacional e internacional de Macunaíma, constituiu uma comissão para avaliar o panorama da produção local. Um documento elaborado em 14 de março de 1982 aborda as dificuldades por falta de recursos financeiros e “Faz notar que os escassos patrocínios normalmente procedem de órgãos governamentais e se destinam à montagem de espetáculos, beneficiando um número reduzido das peças produzidas e colocadas em cartaz” (Milaré, 2010, p. 79). Tempos em que o Ministério da Cultura sequer existia: sua certidão de nascimento data de 1985.

 

Receber o aval do Sesc – leiam-se os trabalhadores que têm impostos recolhidos através do empresariado dos setores de comércio e serviços – significa a garantia de continuidade. Apesar da reconhecida atenção dispensada às artes cênicas, proporcionando ingressos acessíveis e programação qualificada em sua rede de 32 unidades no interior e na capital, realizando espetáculos (um dos contratantes mais frequentes da Cooperativa Paulista de Teatro) e festivais, o papel da entidade não suplanta a necessidade de ação nas esferas de governos municipal, estadual e federal. Por isso a relevância da Lei de Fomento em sublinhar “o desenvolvimento do teatro e o melhor acesso da população ao mesmo”. Seu ponto de vista é, antes de tudo, público – um dever para com o cidadão.

 

Transcorridos oito anos e 17 editais lançados, são evidentes as mudanças paradigmáticas advindas do programa. O número de núcleos cooperados cresceu três vezes e meio. Eles eram 299 em 2001, ano anterior à vigência da Lei de Fomento, e hoje somam 1.076 [1] – ressaltando que associações não ligadas à Cooperativa Paulista de Teatro também são contempladas. O aumento substancial indica que cabe no horizonte, além do esforço corrente de levantar uma produção, a possibilidade de manutenção do espaço combinada à capacidade ideal de viver plenamente do ofício, investir tempo e cabeça na pesquisa, assim como o CPT/Sesc dispõe – condição que a maioria dos trabalhadores do teatro no país está longe de usufruir.

 

Ampliou-se o raio de reverberação da arte do teatro, apesar da predominância de atividades na região central de São Paulo. Levantamento concluído após o resultado da 11ª edição, no segundo semestre de 2007, mostra a seguinte distribuição entre os 143 projetos contemplados até então: 35,66% deles acontecem no centro, 24,47% na zona oeste, 16,08% na leste, 13,28% na sul e 10,48% na norte. A Secretaria Municipal de Cultura estima que esta divisão sofra pouca variação de lá para cá. Um dos critérios de seleção do programa confere peso à contrapartida social ou benefício à população de acordo com o plano de trabalho do grupo. Apresentações, oficinas, seminários, exposições, saraus, cortejos e outras variantes são realizados em áreas carentes de equipamentos culturais e atraem uma gente que “não tinha condições de ir ao teatro e que também está se formando no diálogo com essa produção” (Labaki apud Nascimento, 2007, p. 60). Adolescentes e crianças, sobretudo, viram espectadores cativos dos artistas locais, quando não se tornam um deles, amadores.

 

Os profissionais lutaram para converter consciência artística em protagonismo político, como lê Paulo Arantes (cf. Néspoli, 2007, pp. D8-D9). Houve pelo menos três anos de mobilização em assembleias, elaborando textos sugestivos ao pré-projeto de lei, convencendo vereadores nas galerias da Câmara Municipal, um engajamento que vingou a causa e segue vigilante toda vez que um secretário ou prefeito de turno ameaça tungar o fundo público e perdido dos mais bem aplicados na cultura em São Paulo. O Teatro da Vertigem, assim como centenas de coletivos do país, sonha com a implantação desse mecanismo em nível nacional. “Esse programa é e deve ser exemplo de modelo de uma política cultural de Estado que alcance todo o Brasil” (Fernandes e Audio, 2006, p. 152).

 

Tais indicadores da multiplicação dos grupos e da sensibilização do público não redundam, necessariamente, o cumprimento auspicioso de um hipotético artigo primeiro dessa arte cuja natureza deveria ser regida “pelas leis da teatralidade” (Grotowski, 2007, p. 45). A ciranda de projetos é correlacionada à ansiedade plasmada em cena. Pensamento e ação soam desconexos. Montagens são processadas a toque de caixa, comprimidas no calendário. Talvez o calor da hora de 2010 ainda não permita aferir essas questões. Está por ser esquadrinhada a resultante do universo da linguagem, seus avanços reconhecíveis em dramaturgia, atuação, encenação, ocupação de espaços não convencionais e demais veredas, cabendo distinguir retrocessos e estagnações.

 

Rememoramos um trabalho emblemático da vitalidade do teatro de grupo no período, por ressignificar em cena o moderno e o arcaico, imbricar o velho e o novo, e não só como recorte histórico da Guerra de Canudos, mas como hibridização de linguagens da ventura do Oficina Uzyna Uzona em cinco partes de Os sertões (2002-2006). Quando as peças são registradas em DVD, é José Celso Martinez Corrêa, Conselheiro, quem atenta aos seus pares e ao seu tempo:

 

O teatro brasileiro não está mais decadente, vive um gênesis da Criatividade e Poder. Vide Os Satyros dando vida à Praça Roosevelt. O Vertigem reavivando o Tietê. Os Parlapatões, as Artes do Cinema, a Medicina, a Saúde, se misturando na catarsis do Teatro retornado Bárbaro Dionisios. O Exú do Prazer do Canto do Bode. Apolonizado pela convergência digital no Ditirambo da Dança contada cantada. Há nações entrelaçando-se, dissolvendo-se e renascendo, não no multiculturalismo de campo de concentração das culturas, mas em sua Orgya. Desse cadinho nasce também uma nova Política. Um poder de presença que vence pela criatividade absoluta da vida em todos os “x” encontrados dos problemas. (Corrêa, 2006, p. 13)

 

Citamos ainda o plano das ideias e das reflexões nas plataformas do ensino e do saber incidentes no arejamento estético, como as contribuições da Escola Livre de Teatro de Santo André, da Escola de Artes Dramáticas e do Departamento de Artes Cênicas da USP, do Departamento de Artes Cênicas da Unicamp (o Lume nasce Laboratório Unicamp de Movimento e Expressão, em 1985, três anos após o CPT, hoje Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais propulsor da cena de coletivos em Barão Geraldo, Campinas) e da recém-criada SP Escola de Teatro, todas elas iniciativas públicas pontuadas porque prospectam a linguagem como “instrumento perfeito para produzir significados e, também, para destruí-los” (Paz, 2008, p. 11).

 

Nossa crítica centra-se, no entanto, na corrida febril pela produtividade e os contratempos ao eixo criativo. Cada agrupamento põe-se em campo aguerrido para ver seu projeto aprovado nos editais do município (Lei de Fomento) ou nas instâncias estadual (ProaC) e federal (prêmios da Funarte casados à Petrobras) sob o imperativo dos verbos “produzir” e “circular”, que veem conflitando com “pesquisar”. A preocupação legítima com a sobrevivência – e a razão de ser do programa é estimular a continuidade – distendeu ainda o potencial politizador da articulação vitoriosa dos grupos. Vêm à tona suscetibilidades, por causa de determinados núcleos mais selecionados que outros, para citar um dos calos. Já  se vão oito anos  e cada resultado da Lei de Fomento suscita acirramentos. A disputa por subsídios como que ergue trincheiras. Além do espectro político-administrativo, que ronda desde que está em vigor, à mercê da máquina pública, há o risco dos próprios artistas minarem suas forças pela rixa, pela desqualificação do outro, ainda que perceptíveis uma ou outra sinalização contra esse tipo de desgaste.

 

Fica a sensação de saturação, pelo volume de espetáculos, pelas temporadas curtas que já alcançam sessões únicas semanais, mesmo nas salas e galpões do Sesc, que até  pouco conseguia imprimir um ritmo diferenciado ao circuito e agora reflete a agenda apertada entre suas próprias unidades. Um circuito cada vez mais veloz e inflado pulveriza a aderência nas retinas, na memória natural do que se constrói, assim se espera, pelo valor intrínseco da maturação. Seria tudo isso um sintoma da contaminação cotidiana pelos índices de consumo atribuídos à expansão da economia brasileira? A desvirtuação atenta. “O mercado e nossos companheiros que ainda acreditam nele são perfeitamente capazes de desviar essas leis para seus próprios objetivos, mas o risco maior é o aprofundamento da crise do capital, que pode em minuto fazer evaporar o próprio fundo público que disputamos” (Costa & Carvalho, 2008, p. 142).

 

Para concluir esta análise – que ganhou contornos francamente panorâmicos -, um pouco de digressão. Nos louros que colhe pela criação da Escola de Arte Dramática, a EAD, ao final dos anos 1940, anexada à USP em 1969, Alfredo Mesquita costumava contar o idílio de Carlos Lacerda para com o teatro bandeirante nos anos 1960. O político bajulava a presumida felicidade dos paulistas: “em todos os lugares aonde vou, das reuniões mundanas às políticas, dos escritórios aos bares, à sua livraria (…) fala-se, comenta-se teatro, todos se interessam por teatro!”. (Lima, 1985, p. 13). Ao que Paschoal Carlos Magno, pespegando desde o Rio de Janeiro, não concordava: “Precisamos acabar com aquela chatice do teatro em São Paulo”. (idem, p. 9)

 

Ao finalizar as aulas num curso de introdução à arte dramática em São Paulo, em 1968, o ensaísta Anatol Rosenfeld lançou um prognóstico curto e direto: “O teatro brasileiro está em desenvolvimento, com força de ricas perspectivas futuras. Somos otimistas: há bons atores, seu número está aumentando, já existem bons diretores e autores também” (Martins, 2009, p. 390). Estas palavras foram mensuradas, então, pela régua das obras de Plínio Marcos, Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, Roberto Freire, Ariano Suassuna, Hilda Hilst, Dias Gomes, Jorge Andrade e pelos musicais pós-ditadura montados pelos grupos Arena, Oficina e Opinião.

 

Tão longe e tão perto, essas vozes podem ecoar algo do que vivenciamos e vamos atravessar na década que vem aí. É inequívoca a euforia dos musicais replicados da Broadway e do East End, ou recriados à la Brasil. Há uma legião de espectadores amantes deste entretenimento financeira e artisticamente sofisticado, sucessos made in Estados Unidos e Inglaterra, que atraem turistas de outros Estados a São Paulo. Em consequência, mais atores, dançarinos e músicos estão tecnicamente preparados para jogar com essas habilidades corais e solistas.

 

Nestes anos 2000, a Rede Globo de Televisão assumiu que “o teatro passa por aqui”, quem sabe tentando conciliar-se com a vida dupla de parte dos elencos, metida a subir aos palcos, uma vez impossibilitada de ficar em cartaz de quinta a domingo – com honrosas exceções -, devido às gravações no Rio ou em São Paulo, ou vice-versa. O apoio vem emoldurado em vinhetas na telinha ou em página inteira, às quartas-feiras, publicada nos jornais O Globo e O Estado de S.Paulo, sempre sem pestanejar a campanha institucional da emissora empenhada no celeiro.

 

De fato, um marciano que passasse pela capital paulista efervescida pelo teatro de grupo, superproduções musicais, militância do teatro de rua no centro e nas bordas da cidade, comédias stand-up, ímpetos desdobrados de Antunes e Zé Celso, recôncavo de trabalhos de proa vindos de outras praças do país, do exterior e inclusive do interior de São Paulo, interseção de criadores e professores na seara da universidade, publicações afins em editoras especializadas ou não, arrojo no teatro para crianças, edital para residência entre grupos e encontros reflexivos patrocinados pelo instituto cultural de um banco – o Itaú -, enfim, esse turbilhão põe a arte do teatro em uma roda viva que embaralha razões para tanta produtividade em detrimento da excelência incondicional. Se “cabe à arte atual restabelecer um vínculo com a experiência” (Naves, 2007, p. 28), nossa perplexidade é constatar que a experiência tornou-se relativa. Poucos lhe dedicam coragem e tempo efetivos.

 



[1] Fonte: Coordenação do Núcleo de Fomento ao Teatro, DEC-SMC, Marisabel Lessi de Mello.

 

APÊNDICE

 

Os oito anos da Lei de Fomento

(dados atualizados até a 17ª edição, agosto de 2010)

 

Grupos contemplados: 252

Projetos inscritos: 1.649

Soma de recursos: R$ 61.956.507,95

 

Distribuição por regiões da cidade

(proporcionalidade geográfica de 143 projetos contemplados até a 11ª edição, em 2007)

 

51 realizados no centro, ou 35,66 dos selecionados

35 na zona oeste, 24,47%

23 na zona leste, 16,08%

19 na zona sul, 13,28%

15 na zona norte, 10,48%

 

Fonte: Coordenação do Núcleo de Fomento ao Teatro, DEC-SMC, Marisabel Lessi de Mello.

 

 

BIBLIOGRAFIA

CORRÊA, José Celso Martinez. “Terra azul orgasmo ó”, Programa Os Sertões – A Terra, São Paulo, Oficina Uzyna Uzona, 2006.

COSTA, Iná Camargo & CARVALHO, Dorberto. A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura: os cinco primeiros anos da Lei de Fomento ao Teatro. São Paulo, Cooperativa Paulista de Teatro, 2008.

FERNANDES, Sílvia & AUDIO, Roberto (org.). BR-3. São Paulo, Perspectiva, Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

FERNANDES, Sílvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo, Perspectiva, 2010.

GROTOWSKI, Jerzy, FLASZEN, Ludwik & BARBA, Eugenio. O teatro laboratório de Jerzy Grotowski: 1959-1969. São Paulo, Perspectiva, Sesc SP, 2007.

LIMA, Mariangela Alves de (org.). Imagens do teatro paulista. São Paulo. Imprensa Oficial do Estado, Centro Cultural São Paulo, 1985.

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MILARÉ, Sebastião. Hierofania: o teatro segundo Antunes Filho. São Paulo, Perspectiva, Sesc SP, 2010.

NASCIMENTO, Reginaldo (org.). Cadernos do Kaus: o teatro na América Latina. São Paulo, Scortecci, 2007.

NAVES, Rodrigo. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo, Companhia das Letras, 2007.

NÉSPOLI, Beth. Paulo Arantes: um pensador na cena paulistana. In: O Estado de S.Paulo, Caderno 2, 15 de julho de 2007.

PAZ, Octavio. Marcelo Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo, Perspectiva, 2008.

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SERRONI, J.C. Teatros: uma memória do espaço cênico no Brasil. São Paulo, Senac, 2002.

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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