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Recortes histórico e político no Festival Santiago a Mil

10.2.2011  |  por Valmir Santos

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PROTEGER-SE DEL FUTURO

Marthaler documenta a banalização do mal com rara beleza

 

O diretor, dramaturgo e músico suíço Christoph Marthaler aporta pela primeira vez na América do Sul com Protegerse del futuro (2005), produção que passou pelo Festival de Avignon em 2010. Evento do qual coube a ele também abrir com Papperlapapp (blábláblá, em alemão), uma revisão irônica das idéias e do lugar do sul da França que os papas habitaram na Idade Média.

 

Protegerse del futuro dura cerca de quatro horas e foi apresentado em Santiago no edifício de um colégio jesuíta em atividade desde 1856. As salas de aula, o pátio e os corredores que expõem vitrines de troféus e animais empalhados constituem deslocamento perfeito do espaço cenográfico original: um hospital psiquiátrico de Viena, na Áustria, onde crianças com problemas mentais eram submetidas a experimentos ditos científicos que invariavelmente as levaram à morte durante a Segunda Guerra.

 

O prólogo é a exibição de um documentário produzido e editado pela equipe de colaboradores de Marthaler. Voz off e imagens em preto e branco substanciam a investigação feita em prontuários, pavilhões e ambulatórios do hospital que até cinco anos atrás ainda mantinham cérebros de crianças mergulhados em formol. O tratamento hiper-realista domina a jornada processional do espectador, à maneira das criações do Teatro da Vertigem em espaços não-convencionais.

 

No meio do caminho, deparamos com fotos, livros, objetos, brinquedos abandonados pelos cantos. Um ambiente agônico para tanta crueldade contraposta à arte: a excelência das execuções ao piano, nos instrumentos de sopro e no canto. Árias, canções e peças de um repertório operístico (Schubert, Mahler, Shostakovsky) de tirar o fôlego, tanto quanto o tema da desumanização. No vasto salão da escola, de pé-direito alto, ocupamos longas mesas como numa reunião de uma entidade secreta. Surgem os onze atores-cantores, alguns deles também músicos. São tipos cômicos que vão propagar os discursos assombrosos de culto à eugenia, de superação da raça ariana, além de encarnar o diretor do hospital, seus asseclas e suas vítimas mirins.

 

A terceira e derradeira parte conduz o espectador a uma abóbada do mesmo salão, agora esvaziada e vista de outra perspectiva. Uma arquitetura imponente redimensiona os argumentos do médico coordenador das torturas e eutanásias em contraponto aos depoimentos de alguns dos sobreviventes, mesclando extratos da realidade e da ficção na dramaturgia concebida por Stefanie Carp em colaboração com o elenco.

 

Marco de resistência, inclusive em campos de concentração, o humor cede gradativamente à melancolia cinzenta dos fatos históricos recriados pelo teatro e pela música. Beleza e dor suportados pela máscara que os artistas usam ao final, retirando-as do rosto para depositá-las sobre uma mesa. O projeto desmascara tragicamente o psiquiatra e neurologista austríaco Heinrich Gross, de quem a justiça só foi se acercar no final da vida, após denunciado pela imprensa – ele morreu demente justo no ano em que Protegerse del futuro veio à luz, em 2005. Desmascara as sociedades europeias e alhures, de ontem e de hoje, contaminadas do mal estar da civilização.

 

 

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VILLA + DISCURSO

Guillermo Calderón contragolpea a ditadura e o presente com o poder da palavra

 

O jorro verbal que Guillermo Calderón imprime em seus textos e encenações, como mostrou em turnês pelo Brasil com Neva e Diciembre, a bordo do grupo Teatro en el Blanco, irrompe em alta voltagem narrativa em Villa + Discurso. A junção de dois textos curtos resulta o formato de uma instalação levada a centros de tortura reais usados pelos torturadores da Dirección de Inteligencia Nacional, a DINA, durante regime militar (1973-90). No caso, a sessão de ensaio aberto aconteceu no edifício da rua Londres, 38, no centro de Santiago, local onde as paredes e o chão guardam indícios do que foi a repressão às organizações de esquerda chilenas.

 

A palavra é bala na agulha logo na primeira parte. Em Discurso, três atrizes assumem a voz da ex-presidente Michelle Bachelet em sua fictícia despedida do governo (2006-2010). A médica que teve o pai assassinado num quartel e foi ela mesma torturada ao lado da mãe, antes de partirem para o exílio, comete uma espécie de mea-culpa em relação ao seu mandato exercido com pouca ou nenhuma indignação em relação ao passado, na perspectiva de Calderón. A dramaturgia reflete de modo contundente a frustração das gerações que votaram em Bachelet e a viram recuar das reformas populares em nome da gerência do modelo econômico neoliberal de que deu fé.

 

O arco geopolítico vai de 1973 aos dias de hoje, com citações a Henry Kissinger, Fidel Castro, Barack Obama, Lula, etc. “Estou no setembro da minha vida”, diz a Bachelet tripartida também nas cores da faixa presidencial sobre o indefectível tailleur gelo: o branco, o vermelho e o azul da bandeira de seu país. Os compositores Victor Hara (chileno fuzilado pelos agentes de Pinochet) e o alemão Johann Sebastian Bach são evocados pelos vieses romântico e humanista que desfalcaram a gestão “social consumista” da pedagoga e atéia que sempre estampa em público o seu riso simpático.

 

Trata-se de um ato performático sustentado a seco, uma fala violentamente política e direta que não comporta mediações, digamos, teatrais. Até a pasta com o discurso oficial é colocada de lado para deixar vir à tona a verdade dissimulada pela representação do cargo. A ação dissertativa denota um sentido de urgência concentrado na oralidade. Tino que ainda não se aplica ao olhar ou ao minimalismo gestual das atrizes cuja beleza e juventude as traem na gravidade emocional dos relatos e ironias em meio-tons. São elas Francisca Lewin, Carla Romero e Macarena Zamudio.

 

Um intervalo de dez minutos e lá vamos nós para a segunda parte, Villa. Três mulheres integram uma comissão que decidirá sobre como revitalizar o complexo arquitetônico de Villa Grimaldi, principal centro de tortura e extermínio do ditador Augusto Pinochet. Depois de incitar a memória do presente, Calderón projeta a memória de destino numa paródia aos museus refrigerados que tentam apaziguar os fatos em vez de realçá-los de forma mais visceral, como os diálogos aqui entabulados.

 

A teatralidade torna-se evidente com o desenho mais definido das personagens, suas funções, suas estratégias de convencimento, seus jogos de vítima e algoz na missão de realçar os fatos ou colocar panos quentes sobre a memória do espaço a ser remodelado. Não se descarta, inclusive, deixá-lo como está, já que suas instalações originais foram destruídas. Mas, aí, o que fazer com os milhões empenhados no projeto de revitalização e, inclusive, na remuneração das três mulheres que vão dar rumo à verba?

 

Aos poucos, elas transparecem as sequelas que a ditadura deixou em cada uma. Desarmam-se e passam a limpo o artifício, o blefe e o pragmatismo desavergonhado que rege os interesses. Prevalece o país da maquete, sempre em reforma, ansioso pelo porvir que o desprenda da realidade e o lance na irrealidade cotidiana conformada no ano passado pela criação do Museu da Memória em Santiago. Calderón é filho dos anos de chumbo. Seu país já investigou abusos levantados pela Comissão da Verdade, como o fizeram também Uruguai e Argentina. Se o dramaturgo e diretor mesmo assim luta para não apagar a história, o que dirá o Brasil de Dilma Rousseff que ainda nem revolvemos os crimes militares? Villa + Discurso é um projeto que deveria ser visto e ouvido nos centros de tortura equivalentes no Brasil nestes primeiros meses do espelhamento Rousseff/Bachelet.

 

 

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MI VIDA DESPUÉS

Lola Arias faz testemunho poético sobre a memória

 

Transpor o testemunho pessoal para a cena é uma atitude arriscada, no pior sentido. Vide a banalização da intimidade nos meios de comunicação. A produção argentina Mi vida después põe na voz da primeira pessoa as histórias de seis atores-criadores às voltas com um resgate presumido das idéias e desejos que moviam seus pais, dentro e fora de casa, em plena vigência da ditadura militar entre os anos 1970 e 1980. São processos autobiográficos de interrupção pelo desaparecimento ou assassinato de familiares rememorados por meio de fragmentos de diários, correspondências, fitas cassetes, canções, brincadeiras e militâncias políticas e sociais diante do regime de exceção. A criação da Compañía Postnuclear, catalisadora de artistas de diversas áreas, aqui sob direção de Lola Arias, inventaria o material no liame dos afetos e dos fatos da história recente da Argentina vistos sob a perspectiva de um guerrilheiro, de um funcionário público, um bancário, um padre, um jornalista peronista e um casal de exilados.

 

O sexteto lança-se ao realismo com imagens, palavras e canções ao vivo, ainda que as narrativas carreguem algum componente ficcional. O trabalho de editar essa colcha de biodramas já pressupõe uma reinvenção do relato de origem. A diretora abre o jogo ao espectador com naturalidade, a relação frontal, um palco de passagem para o tempo e as projeções na tela ao fundo. O microfone, a guitarra e a mesa de luz operada na lateral são recursos de distanciamento a favor do fluxo de reminiscências. O espetáculo não se rende ao tom piegas e defende sua complexidade poética e política com silêncio, comoção e humor delicado. Um projeto geracional de reconhecimento das feridas sociais e políticas. E pela liberdade dos que virão, como o filho de um dos atores que surge no tablado na parte final, em seus poucos anos de vida, brincando com a restituição do que um dia os ditadores tentaram apagar.

 

Conhecida do público de São Paulo pela colaboração com o suíço Stefan Kaegi, do coletivo Rimini Protokoll, com quem montou Chácara Paraíso (2007) – instalação que reproduzia um centro de treinamento da polícia militar com agentes licenciados ou aposentados -, Lola Arias trata o suporte documental sem assepsia ou medo de tocá-lo e se deixar contaminar. O espectador, por sua vez, identifica-se com os ciclos de perdas e rupturas institucionais tão comuns à ordem do dia planetária.

 

 

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EL VIOLIN EN EL VIENTO

Claudio Tolcachir emenda a omissão à redenção

 

A sala de (mal) estar, o quarto, a cozinha. Os cômodos da casa sem paredes, móveis apinhados. A acumulação de coisas e de gente em espaço reduzido, o verbo jorrado a torto e à direito, tudo nos é familiar no teatro recente da Companhia Timbre 4, da Argentina. A terceira parte da trilogia do autor e diretor Claudio Tolcachir, que abriu com La omissión de la familia Coleman e passou por Tercer cuerpo, deságua em El viento en un violin. Assistimos ao primeiro e ao segundo trabalhos. O furacão que desestabiliza tudo no início dá lugar a tempestades mais afetivas: o aprendizado do amor no mundo de ponta-cabeça, sob o mesmo teto e lá fora.

 

Há mais silêncios e sutilezas na comicidade que desfere sobre os costumes, que humaniza o que está fora da dita convenção. Darío, o filho emocionalmente desequilibrado, não deixa de continuar sendo, como o demonstra nos diálogos impagáveis com o analista que sua mãe, outra desajustada, contratou (autoironia de Tolcachir para com a voga psicanalista na sociedade argentina). O tempo o tornou mais perspicaz: “Tudo o que vejo está em meus olhos”, diz Darío, introspectivo.

 

Suas falas já não eram tão desconexas em Família Coleman. Desta vez, há mais sentimentos em jogo: vértice do desejo de uma união lésbica ávida por um filho. Forçado a manter relações sexuais por uma das moças, armada, eles ficam “grávidos”. A origem criminosa desse encontro traz à tona as classes sociais diferentes e o sonho comum de jovens e adultos: colo e reconhecimento.

 

Nada de divagações sociológicas, de psicologia vã. O estranhamento realista em Tolcachir mobiliza o espectador pelo bom humor, no início, e aos pouco o afunda na plateia com a intimidade e a fragilidade cotidianas. A Timbre 4 desbasta as gorduras da cena e do lugar comum das relações para revelar que elas são específicas, possuem DNA. Afinal, a mitomania é familiar a homens e mulheres de todos os quadrantes. Cada um elabora a sua redenção como pode. Ou não.

 

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SANTIAGO

Moldura religiosa ofusca teatralidade do Yuyachkani

 

O manto religioso, nos deslimites da devoção, ofusca a teatralidade em Santiago, a produção de 2000 que o Grupo Cultural Yuyachkani trouxe para a capital chilena batizada com o mesmo do santo, um dos apóstolos de Jesus Cristo e padroeiro dos conquistadores espanhóis na América que dizimaram os índios. A montagem de 2000, concepção coletiva sob dramaturgia de Peter Elmore e direção Miguel Rubio Zapata, destoa de trabalhos marcantes do núcleo peruano, como Hecho en el Perú, vitrinas para un museo de la memoria (2001), El último ensayo (2008) ou Los musicos ambulantes (1983), todos entrelaçados à tradição espiritual da cultura andina, suas celebrações populares, sem prejuízo do desempenho artístico.

 

É flagrante notar atores de traços densos como Ana Correa, Augusto Casafranca e Amiel Cayo submetidos à imponência da crença e da cenografia: a escultura de um cavalo em escala natural catalisa o espaço cênico, o interior de uma igreja num povoado diminuto dos Andes. A presença do intérprete é refém da expressão mimética dos preparativos para o festejo no interior do templo (o altar, a cruz, a capela, os bancos, as velas, as flores) e depois a saída para a procissão.

 

A narrativa tensiona as relações do organizador da festa, sua fé cega e manipuladora; da assistente dele, devota em busca de milagre; e do guardião da igreja, de ascendência indígena – um sujeito que quanto mais sonha, mais se recorda. A dramaturgia é potente na dissecação da cultura católica imposta, no contraponto à cultura quéchua – parte do espetáculo é falada nessa língua autóctone –, mas a encenação se ressente da moldura espacial, da marcação limitante do gesto e do movimento dos atores.

 

Há um tom solene, quem sabe demasiado fiel à representação do imaginário nutrido pela pesquisa de campo realizada numa cidade interiorana do Peru que faz o cortejo anual para evocar o cavaleiro de espada montado em seu cavalo. Um tratamento cerimonioso dominante e raramente rompido em sínteses de fusão sincrética, como aquela do guardião de Cayo dependurado numa cruz à maneira de Cristo. Embate das culturas indígena e branca, contrastes seculares colocados em relevo.

 

A apresentação de Santiago num dos edifícios teatrais mais antigos da região central da capital do Chile, no entanto, se refletiu um elenco protocolar em cena, apesar da habilidade na hora de tocar instrumentos ou jogar com adereços, objetos, máscaras. Um espetáculo que pode induzir perigosamente ao registro museológico que não condiz com a histórica fricção com o seu tempo nas criações do Yuyachkani prestes a completar 40 anos.

 

 

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AMLEDI, EL TONTO

Raúl Ruiz perde-se em seu labirinto

 

Encenador bissexto, o cineasta Raúl Ruiz decepciona ao mergulhar nas raízes de Hamlet. Sua adaptação do texto em latim Gesta danorum (história dinamarquesa), do século XII, legado do escritor medieval Saxo Gramaticus, resulta uma leitura turva para a cena e frágil na evocação da obra que teria inspirado a tragédia de Shakespeare cerca de quatrocentos anos depois.

 

Tanto a dramaturgia de Amledi, el tonto, como a direção, ambas assinadas por Ruiz, não atinam. A narrativa do épico escandinavo é coalhada de citações, excertos de fábulas infantis, uma avidez em alcançar o presumido público de todas as idades que, no entanto, perde-se em seu labirinto. Uma criança pontua um quadro ou outro, denotando o ponto de vista autobiográfico do diretor sobre a magia das histórias bem contadas. Pena que a anunciada imersão onírica não se cumpre.

 

A encenação tampouco costura esses retalhos, sucumbindo a uma moldura literal do palco, uma cenografia tosca, bastante diversa da atitude algo anárquica adotada pelo próprio adaptador ao aventurar-se nesta obra da arqueologia literária à qual foi apresentado pela primeira vez por meio dos escritos de Jorge Luis Borges.

 

O espetáculo desanda de vez com o elenco errático, 20 atores visivelmente pouco à vontade no projeto idealizado por Ruiz e produzido pelo Festival Santiago a Mil – uma das estreias mais aguardadas. Curiosamente, Rodrigo Soto, no papel-título, encontra um equilíbrio mínimo de presença (voz e corpo) em meio ao caos reinante nesta montagem ambiciosa, que dura cerca de três horas, com intervalo, e tem parte da trilha executada ao vivo por músicos postados numa das frisas do teatro. Seus instrumentos abrem e fecham os atos. Sopros e teclados retumbantes não capturam o espectador diante do desalento.

 

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JAN LAUWERS, NEEDCOMPANY

 

 

Cofundador da Needcompany, em 1986, o belga Jan Lauwers conversou com o diretor chileno Ramón Griffero sobre Interdisciplina sin fronteras. A companhia trouxe dois espetáculo para Santiago: La casa de los ciervos [A casa dos veados], dirigido por ele em colaboração com o elenco, e Esta puerta es demasiado pequeña (para un oso) [para um urso], direção e coreografia de Grace Ellen Barkey.

 

Lauwers tem formação em artes plásticas, nunca estudou teatro formalmente. Ele conta que há 15 anos suas criações eram permeadas pela linguagem fragmentada. Gostava de desconstruir o todo para iluminar o subtexto que julgava mais importante. Hoje, a vocação é por um teatro que ele chama de “troca de essências”. O bom teatro tem a ver com diferentes centros de energia (o ator, a dança, a canção, os figurinos, o espaço cênico) sem perder de vista o texto como base do espetáculo. A sensualidade do corpo tem o mesmo peso da palavra. “No teatro convencional, o centro é uma maneira demagógica de ver uma obra. Quando há vários centros, o espectador tem que eleger as janelas pelas quais vai entrar”.

 

Lauwers descrê da função política da arte. Lembra que Michelangelo e Duchamp enfrentaram problemas de deslocamentos políticos ou religiosos, sobretudo quando o realismo social encontra o realismo fascista. “Faço teatro há 20 anos e nunca encontrei função política. O teatro é uma arte coletiva que não está tão inserida no sistema de mercado capitalista, porque prescinde da liberdade”, afirma.

 

Para o encenador, o teatro é o lugar de resistência. “O poeta, o artista, tem a função de diferenciar [Salvador] Allende de [Augusto] Pinochet. Hoje, quando falamos aqui nesta sala, a arte tem um lugar de resistência.” Tampouco lhe interessa discutir identidade, falar de perda ou reafirmação de identidade, mote para a ascensão dos partidos de ultradireita nacionalista na Europa. Interessa-lhe a obra de arte universal em seus temas e conteúdos, daí o perigo do discurso da identidade. “Destruo a ilusão para construir outra. O artista diz uma verdade que é sua visão particular. Desconstrói a ideia de representação e presentação. Processa uma decomposição. Mas se a forma não impõe conteúdo, aí não dá”, afirma.

 

Por fim, uma janela cada vez mais valorizada em cena, mesmo quando toca às tragédias contemporâneas: o humor. “O humor na arte não é para covardes. É para valentes, precisa de muito talento”, sentencia o artista belga que passou por São Paulo e Rio com “O Quarto de Isabella”, em 2006.

 

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ESCUELA DE ESPECTADORES, GALPÃO E COMPANHIA DOS ATORES

Em sua quinta edição, projeto formativo foca espetáculos ibero-americanos

 

 

Entre as atividades formativas, a Escuela de Espectadores realizou seu quinto ciclo de análises de espetáculos em encontros com alguns criadores, abertos ao público e mediados pelo crítico Javier Ibacache e pela pesquisadora Soledad Lagos.

 

O programa de formação idealizado pelo também jornalista Ibacache foi lançado em 2007 e, desde então, consolidou-se como um espaço de reflexão e difusão dos conteúdos de apreciação artística em suportes como três edições dos debates em livro (sai sempre no ano seguinte), programas de rádio e de televisão e até uma audioteca da dramaturgia chilena. Ou seja, o projeto estende-se ao longo dos ano, passado o frenesi de espetáculos nacionais e internacionais em janeiro.

 

As criações nacionais e sul-americanas, em dança e em teatro, mereceram destaques na pauta de recepção da Escuela no Santiago a Mil de 2011. Os artistas convidados compartilham aspectos–chave dos seus processos de trabalho e respondem às questões do público em geral e dos mediadores.

 

Um exemplo desses encontros se deu na tarde de 13 de janeiro, na sala de conferências do Centro Cultural Gabriela Mistral, o GAM, quando foram focadas as montagens do Grupo Galpão (Till, la saga de um héroe pícaro, na grafia em espanhol, também a língua à qual o elenco recorreu em busca da comunicação com o público ao ar livre) e Companhia dos Atores (Ensayo.Hamlet – não foram observadas as três “autopeças” do núcleo também incluídas na programação, Apropriação, Bate Man e Talvez).

 

O conteúdo analítico das obras do Brasil não aconteceu porque os mediadores ainda não haviam assistido aos espetáculos em pauta, subentendendo impedimentos pela distância (o grupo mineiro teve sessão na véspera numa localidade da região metropolitana) e pela lógica (o grupo carioca estrearia sua principal montagem dali a duas noites).

 

Coube a Eduardo Moreira, Antônio Edson e Inês Peixoto, pelo Galpão, e a Marcelo Olinto e César Augusto, pela Companhia dos Atores, tecerem introduções sobre a concepção dos espetáculos, situá-los dentro das respectivas trajetórias e linguagens dos coletivos.

 

O comentário mais distanciado e apropriado veio de um cidadão da plateia que assistiu a Till e associou os atores do Galpão a “heróis da pólis” por traduzirem em cena uma identidade própria, aspecto que lhe soava político por si só porque levado ao ar livre.

 

 

CONVERSACIONES TEATRALES

Atividade instiga encontros de artistas locais com estrangeiros

 

Entre os eventos paralelos do Santiago a Mil, o Conversaciones Teatrales reuniu artistas ou programadores de festivais estrangeiros e chilenos. A mesa Aciertos y búsquedas de nuevas y diversas audiencias reuniu os diretores de festivais internacionais Darío Loperfido (Buenos Aires), Cristina King (Puebla, México) e Jonathan Mills (Edimburgo), sob mediação de Paula Echenique, diretora de assuntos corporativos da Fundação Internacional Teatro a Mil, organizadora do principal encontro cultural do verão chileno.

 

Como tocar o espectador contemporâneo? O argentino Loperfido, que assumiu em 2010 o comando do Festival Internacional de Buenos Aires, revela-se sectário. “O mundo está sofrendo uma catástrofe cultural, um processo de imbecilização. Vivemos tempos de corrupção da palavra, de corrupção da linguagem, de degradação estética”, afirma. A função dos operadores culturais, diz ele, é buscar novas estratégias de sobrevivência frente a barbárie, ressignificar os sentidos, gerar pensamento, reflexão.

 

O australiano Mills lembra que o Festival de Edimburgo surgiu em 1947 não com uma ação planejada para atrair turistas. Sua ambição era tornar-se eixo para os sentidos da arte no futuro, disseminar esperanças. Naquele momento, as principais capitais europeias estavam destruídas em consequência da Segunda Guerra Mundial. “Hoje, diante do bombardeio de sentidos, sinto que os espectadores assimilam Edimburgo melhor que os críticos especialiaqeow em música, dança e teatro, que vão armados com suas fórmulas de recepção”, afirma o responsável pelo encontro que reuniu no ano passado cerca de 2.300 artistas vindos de 73 países.

 

(10 de fevereiro de 2011)

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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