contracena
16.4.2011 | por Valmir Santos
Por Valmir Santos
A partir de uma pauta que propus ao editor do caderno Eu & Fim de Semana, Robinson Borges, do jornal Valor Econômico, cuja reportagem pode ser lida aqui, colhi relatos em várias Estados sobre a percepção de que, nos últimos anos, os departamentos de teatro nas universidades, programas de pós-graduação, têm mais presença na produção e conjugam o pensamento teórico e a prática do que vai pela cena nas cidades. Vide contextos como os da USP, UFBA, UFMG, UFBA, Unicamp, UNIRIO, Udesc, UnB, UEL, UFOP, e assim por diante.
Outro termômetro é o crescimento de integrantes da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (Abrace), na casa dos 800, entidade que realizou o seu sexto congresso no ano passado. Os artistas brasileiros, mestres e doutores, estão dialogando com menos preconceito com a academia, inclusive faturando premiações nacionais, interferindo na recepção crítica e na formação do espectador contemporâneo. Um movimento que de certa forma remete à semeadura de modernidade quando Décio de Almeida Prado (1917-2000) integra o Grupo Universitário de Teatro no início dos anos de 1940, em plena fase amadora da capital paulista.
Evidentemente, há uma mar de profissionais no páis que equilibram os ofícios da formação e da arte do teatro. Entre eles, ouvi Nina Caetano (Universidade Federal de Ouro Preto), Thais D’Abronzo (Universidade Estadual de Londrina), Marcos Barbosa (Universidade Federal da Bahia) Fernando Villar (Universidade de Brasília), André Carreira (Universidade do Estado de Santa Catarina), Antônio Araújo (Universidade de São Paulo) e Luiz Fernando Ramos (USP). São diálogos captados por escrito, via email, ou pela fala, via telefone.
NINA CAETANO
(Dramaturga, professora do departamento de artes da UFOP, cofundadora do Obscena, agrupamento independente de pesquisa cênica)
Fico muito contente com o seu convite e vou tentar cooperar com meu depoimento pessoal. Prefiro chamar assim porque vou tratar o assunto a partir do meu olhar e da minha experiência como dramaturga e, sobretudo, como pesquisadora que acompanha o trabalho de alguns coletivos teatrais aqui em Belo Horizonte. Interessante você tocar no assunto, pois ele vem de encontro à percepção do contexto cultural da cidade que tenho a partir da tal experiência com os grupos e que relato, de algum modo, em minha tese de doutorado (em fase de finalização).
Acredito que o contexto da produção teatral mineira – talvez especificamente em Ouro Preto e em Belo Horizonte – tem se alterado, nos últimos dez anos, também em função do surgimento dos cursos de graduação em artes cênicas em ambas as cidades. Em Belo Horizonte, essa realidade é mais complexa e abarca outros fatores, como a consolidação de importantes festivais e encontros – como o FIT-BH, o FID, o ECUM e outros – e de centros culturais como o Galpão Cine Horto, que também vêm fomentando a reflexão crítica e o acesso a novas linguagens. Considero esses dois aspectos fundamentais nas mudanças que vêm ocorrendo no nível da cena e da produção artística como um todo. Como uma das mudanças, posso falar de diversos grupos teatrais e outras formas de coletivo que surgem, justamente, de projetos de pesquisa ou de grupos de pesquisa da universidade, como é o caso do Grupo Teatro Invertido, surgido a partir do Grupo de Pesquisa Prática em Atuação, coordenado pela professora Bya Braga, da UFMG. Ou do Obscena, agrupamento independente de pesquisa cênica que é coordenado por mim e que agrega egressos do curso de artes cênicas da UFOP, bem como do Teatro Universitário da UFMG e pesquisadores de outras áreas, da filosofia às artes plásticas.
O Obscena, por exemplo, por ser um agrupamento eminentemente de pesquisa prática e teórica, vai transitar entre a criação e produção artísticas e a investigação teórica sobre essa mesma produção, buscando abrir seu campo de interesse sobre a cena contemporânea a outras linguagens, como a intervenção urbana e a performance, e a outros campos teóricos, como a sociologia e a filosofia. Dessa forma, sua pesquisa acaba por gerar frutos que se expandem para ações feministas – como a participação na Marcha Mundial das Mulheres ou as oficinas realizadas para adolescentes do sexo feminino em privação de liberdade – e para trocas com coletivos de arte, como a experimentação realizada com o VagoColetivo em dezembro do ano passado, no qual os pesquisadores passaram uma manhã de sábado alterando a paisagem do centro de Belo Horizonte a partir da marcação de sombras por meio de linhas, lãs, giz e outros objetos.
Além disso, a investigação do agrupamento acaba tecendo um diálogo direto com a academia, na forma de pesquisas de mestrado e doutorado, como atestam as dissertações defendidas por dois integrantes do Obscena, Marcelo Rocco (A aproximação entre a cena e o espectador transeunte na sociedade espetacularizada: às margens do feminino), e Clóvis Domingos (A cena invertida e a cena expandida: projetos de aprendizagem e formação colaborativas para o trabalho do ator), e a minha própria tese de doutoramento, na qual dedico um capítulo inteiro à pesquisa desenvolvida no agrupamento.
Como professora do curso de artes cênicas da UFOP, posso afirmar que a consolidação dos cursos de artes – além das artes cênicas, que inclui licenciatura e bacharelado em interpretação e direção teatral, temos o curso de música – em uma cidade com eminente vocação artística, como é Ouro Preto, altera significativamente o panorama cultural da cidade. Em Ouro Preto temos uma especificidade, que é o fato de que os alunos saem de suas cidades natais e ficam imersos no curso durante todo o período da graduação. Isso faz com que a produção acadêmica se misture, rapidamente, ao cotidiano da cidade, e possibilita o surgimento de várias iniciativas que só vão fortalecer esse aspecto, como é o caso das várias mostras criadas pelo corpo discente e que vão desde mostras de esquetes até mostras de cenas originais e de arranjos musicais inéditos. Outra iniciativa interessante e que tem reverberado no surgimento de novos grupos de teatro, como o Virudangas (Prêmio Myriam Muniz de Teatro de 2010), é o projeto Mambembe, música e teatro itinerantes, grupo de pesquisa coordenado pela professora Neide Bortolini, do curso de artes cênicas, e que investiga a releitura de obras literárias a partir da cena.
O interesse no diálogo com a cena é visível na academia, que cada vez mais tem mergulhado no estudo teórico sobre a produção teatral contemporânea. Esse estudo, muitas vezes, parte dos próprios artistas, que passaram a buscar também uma formação acadêmica, mas não se restringe a eles, atingindo, inclusive, outras áreas, como filosofia, antropologia, história, arquitetura e letras, que também têm se debruçado sobre a produção teatral em seus vários aspectos. Como uma via de mão dupla, parece haver também um trânsito maior dos criadores em relação a essa produção acadêmica e muitos dos projetos de criação tem se pautado em uma investigação teórica que, muitas vezes, nasce justamente das teses e dissertações produzidas. É o caso, por exemplo, do projeto Cena 3×4, desenvolvido (de 2003 a 2005) pela Maldita Companhia em parceria com o Galpão Cine Horto, o qual se pautava na investigação do processo colaborativo e tinha como principal base teórica a dissertação de Antônio Araújo (A gênese da Vertigem: o processo de criação de O paraíso perdido). São exemplares também os Núcleos de Pesquisa surgidos no Galpão Cine Horto em 2009, e que visam ao aprofundamento da criação artística pelo viés da reflexão crítica e do conhecimento teórico.
Em suma, eu diria que o trânsito entre academia e artistas tem se intensificado e gerado frutos, estreitando os laços entre a prática e o pensamento sobre a arte.
THAIS D’ABRONZO
(Atriz, diretora e professora do curso de artes cênicas da Universidade Estadual de Londrina e integrante do TOU, o teatro obrigatório universal)
Quando iniciei minha vida acadêmica, como professora, no curso de artes cênicas da UEL, em 2004, percebi certo receio em optar pela academia e acabar por esquecer, ou pouco me dedicar à criação artística do modo como, até então, eu seguia; mantinha certa frequência na criação e produção de espetáculos; e, para além da produção, me sentia produtiva nessa experiência. Por fim, o receio bobo se esvaiu em pouco tempo, na continuidade natural da criação artística, fora e dentro do espaço acadêmico. Desde 2002, mantinha (e mantenho) processos artísticos ligados ao espaço TOU (teatro obrigatório universal) e, já naquele momento o TOU rascunhava e, eu também, traços e o desejo de apostar mesmo numa possibilidade de criação um tanto quanto vagarosa e detalhada da cena; apostar em possibilidades de poética da cena; de possíveis diálogos da cena com outras linguagens, enfim… Possibilidades de experimentação da coisa, chamarei.
Daquele momento pra hoje, ocorreram diálogos interessantes entre o trabalho no curso da UEL e os trabalhos do T.O.U., que tenta se estabelecer a certo tempo como um grupo de poucas e curiosas pessoas, experimentando teatro e no abrigo de outras e novas pessoas… Aulas do curso já foram realizadas na sede do T.O.U., ensaios, espetáculos e afins, de alunos, ex alunos e outros professores do curso, também aconteceram (e acontecessem) ali; dois dos meus parceiros de trabalho foram meus alunos, enfim…
Mantenho, com outra apreensão do tempo e do processo mesmo, essa relação entre a academia e criação artística fora dela; e instigo esse trânsito dentro e fora da academia. E por aqui, na universidade, não sou a única professora-artista. Outra perspectiva se liga ao espetáculo Foi tarde, que dirigi em 2006, como formatura do curso de cênicas da UEL e que também fez parte de minha dissertação de mestrado defendia na Unicamp em 2008. Foi um trabalho bastante significativo em diversos sentidos e, especialmente, por ter se apresentado em alguns festivais do país e, assim, ter contribuído, mesmo que timidamente, no processo de interferência do pensamento teórico e prático da cena teatral (de dentro e de fora da universidade); no processo de recepção crítica, nos processos do espectador…
É esse mesmo o papel da criação artística na academia: interferir nos modos de pensamento e de concepção das coisas. E, evidentemente, estar atento às mudanças que ocorrem fora dela. Por um tempo, a produção de Londrina, artistas e, também o público, reagiram de modo desconfiado ao “forasteiro” e jovem curso de cênicas da UEL; e, de modo semelhante, o curso respondeu e/ou iniciou certos olhares de mau gosto. Mas foi o início de um processo que vem entendendo outros gostos e diálogos, e entendendo também os não gostos e não diálogos. Gosto e acompanho o trabalho e pesquisa de grupos ligados ou não à academia. E gosto mais de reconhecer as conexões acontecendo.
MARCOS BARBOSA
(Dramaturgo e professor da Escola de Teatro da UFBA)
Historicamente, desde sua fundação (anos 1950), a Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia se compreende e se organiza como parte integrante da produção teatral profissional da cidade de Salvador. Longe de ter sido pensada como um centro de estudos puramente referencial, em que o exercício do espetáculo teatral é um tema, temos sempre atravessado currículos em que o espetáculo teatral é o objeto, em si, capaz de aglutinar o trabalho de professores, alunos e funcionários.
A menção a “funcionários” é importante, pois parte de nossos servidores técnicos têm, de fato, formação em teatro e podem ser vistos ora atuando em mostras da Escola de Teatro ora em espetáculos do circuito teatral da cidade. Também somos, até onde sei, a única instituição federal de ensino superior que já fez (embora há muito mais tempo do que desejávamos) concurso para a contratação de funcionários na categoria de “ator”, para que pudéssemos contar com um elenco qualificado disponível para a companhia de teatro e para espetáculos dos alunos de direção teatral.
Para que tenhamos uma baliza clara, ainda que precária: a Braskem patrocina, anualmente, um prêmio para a classe teatral de Salvador e, em 2011, a metade dos artistas indicados tem passagem pela Escola de Teatro, seja como professor, servidor ou aluno. Um quinto dos artistas indicados, inclusive, é de alunos de nossa graduação ou da pós-graduação.
Também os grupos de pesquisa da UFBA, na área de teatro, encontram conexão clara com a produção teatral efetiva da cidade. Em 2010, o Grupo Dramatis, liderado por Cleise Mendes, organizou atividades de trabalho em dramaturgia que resultaram em ação integrada com resultado cênico direto. Explico: fui coordenador de uma atividade de extensão que, durante um semestre letivo, acompanhou um pequeno grupo de interessados na formação em dramaturgia. A produção que resultou desse trabalho foi então organizada como um pequeno festival de novos talentos, em que as peças foram de fato encenadas por um grupo de profissionais que incluía alunos, ex alunos e professores e que teve como um de seus resultados a publicação de um livro com as peças em questão, devidamente apresentadas pelos acadêmicos da UFBA ocupados com o estudo da dramaturgia.
Assim, reforçam-se os laços entre a academia e o dito “mercado” e ainda se apontam, desde a academia, novas perspectivas para a cena local: seja no surgimento de novos artistas, seja no estímulo a novos produtos, como as publicações de textos teatrais vendidas a preços módicos na porta do teatro, durante a temporada das peças.
Agora, numa fala mais pessoal: penso que é fundamental que, para a formação de dramaturgos, se aprofundem os vínculos de academia e mercado. Creio que, de todas as funções propriamente ditas do espetáculo teatral, a dramaturgia é a que mais permanece desamparada no sentido da formação. Claro que há honrosas exceções em curso, como os núcleos do Sesi ou a SP Escola de Teatro, mas a fotografia panorâmica é pouco orientadora. Um grande nó nesse aspecto, claro, segue sendo a dificuldade de se formar também um conjunto sólido de encenadores que saiba perceber a dramaturgia inédita de autores contemporâneos como um objeto particular, peculiar. Enquanto isso não acontecer, a única forma de se observar os novos dramaturgos será através da leitura de textos impressos, que é quando as peças podem enfim existir para além das “assinaturas” muitas vezes nocivas dos encenadores.
FERNANDO VILLAR
(Performer, diretor e professor da UnB)
Acho interessante chamar atenção a dois aspectos do tema pra detonar um toró de ideias aqui. O primeiro é a radical transformação dos corpos docentes dos Departamentos de Teatro, que eram formados por profissionais graduados em áreas afins, que cederam lugar a criadores das diferentes profissões relacionados ao teatro, a artistas atuantes. O segundo é a universidade re-valorizada pelo artista como espaço tempo de investigação de ponta, sem limitações impostas por um mercado ou interesses comerciais, tornando-se alternativa de continuar o trabalho artístico. O terceiro e mais amplo talvez seja as dicotomizações habituais que tentam isolar pólos supostamente opostos, mas que são totalmente contagiantes no melhor sentido, mutuamente nutritivos e transformadores um do outro, como professor e artista. Essas dicotomizações implicam em preconceitos, que como dizia Santa Susan Sontag, “são antigos quanto as histórias dos problemas pessoais mal resolvidos.” Ao mesmo tempo, a ‘academia’ vem sendo alçada a uma área imponente, olímpica e generalizada (ou como solução de tudo ou como escolinha careta de belas artes ou fitness). Reforço que acadêmicos, além das escolas de samba, compunham uma corrente filosófica que poderia ser resumida em dois pontos: desconfiar de tudo e não acreditar em verdade absoluta. Aí, próximo à arte que muitos acreditam. A subjetividade é grande, e podemos falar de diferentes departamentos, com diferentes currículos, metodologias, processos, etc.. Mas a resistência e o preconceito diminuem porque artistas estão vendo colegas sendo professores de um ofício que continuam exercendo. Ao mesmo tempo, universidades estão abrindo suas abordagens para as especificidades da obra artística, da linguagem como componente crucial para abordar a linguagem. Mais artistas vão perdendo o medo da pesquisa e descobrem uma nutrição necessária. Mas a arte maior pode tranquilamente dispensar diplomas e títulos, Há excelentes exemplos na história e na atualidade de qualquer das linguagens artísticas. E também há artistas que realizam grandes obras em suas pós-graduações. Dissertações e teses ensaiam voos ainda poucos de uma escrita artística ou até mesmo performática, que não caia no lugar-comum e nem perca o rigor necessário, com todas as exigências do ritual de passagem do Mestrado ou Doutorado. As chamadas pesquisas práticas, apesar da adjetivação que me parece redundante, estão ganhando espaço e outras concepções e leituras estão rolando.
Faço esse plano geral e agora caio na minha experiência na UnB e com outros grupos. Em 1991, comecei a dar aulas na UnB e a Professora Marly Terraza me parabenizando primeiramente, depois me assustou: “Que pena, você vai parar de criar!” Aquilo me marcou, mas foi um aviso que agradeço até hoje à querida Marly. Assim sendo, logo ali no primeiro semestre eu já entrei dirigindo a primeira montagem do Teatro Universitário Candango, Medeações, dirigindo minhas colegas professoras e escrevendo a dramaturgia com elas, estreando em 1992 e desde então o Tucan colecionou prêmios e montagens expressivas, dentro e fora de Brasília, algumas viajaram bastante o Brasil, outras continuam viajando, como Adubo, ou a sutil arte de escoar pelo ralo, Projeto de Diplomação em Interpretação Teatral 1 de 2004, acho. Nos quase 20 últimos anos, privilegiei a carreira chamada acadêmica, sem nunca esquecer que minha carreira seria artístico-acadêmica. Sendo professor, é crucial o exercício da linguagem artística, seja teatro, dança, teatrodança, performance, ou híbridos artísticos da ação assistida. Não consigo me ver um professor, sem a prática da linguagem, sem dirigir, sem encenar, sem exercitar tantas especificidades dos diferentes aspectos que compõem as infinitas opções da linguagem cênica e performática. A aula é um grande campo de aprendizado, mas uma aula de teatro ou de outra arte da ação assistida demanda a vivência do palco, do espaço encontrado, da performance como apresentação ao vivo, fluindo. Em 2003, em Florianópolis, na abertura do Congresso da Abrace, Roberto Romano, filósofo e professor da Unicamp, disparou logo no início do texto: “A academia está uma máquina de matar talentos.” E arrematou: “E não estou falando dos estudantes.” Aquilo me lembrou Marly Terraza e ali, como novo Coordenador do GT [grupo de trabalho] Territórios e Fronteiras, fiz meu balanço e vi que, obviamente, estava privilegiando a carreira universitária, mas sabendo manter meus trabalhos de direção e encenação, dentro e fora do campus, dentro e fora de Brasília. Continuo acreditando que a vivência e experiência assistida da linguagem é crucial para a contundência do professor, para seu aprofundamento, sua reciclagem. E as instituições estão se abrindo para incorporar essa alimentação mútua, privilegiando a troca entre não só instituições federais de ensino público mas também companhias e grupos de ex-universitários ou de não-universitários e autodidatas. Incorpora-se a alimentação mútua entre arte e educação não mais como dicotomia, mas como fluir e conseguir de melhor forma os objetivos institucionais da UnB, em relação à pesquisa, extensão e ao ensino. E as Artes sabem circular bem e simultaneamente nos três campos.
Tenho trocado sempre com diferentes colegas, seja em festivais, seminários, congressos ou salas de ensaios, sedes estáveis, oficinas, debates, mesas-redondas e performances. O Lume e muito especialmente Renato Ferracini e Cris [Ana Cristina] Colla são parceiros constantes, seja em co-orientações, bancas, ensaios, críticas ao pé do ouvido, toques, questionamentos conceituais.Estamos buscando tempo espaço comum nas agendas para fazer um trabalho, uma montagem. Renato, eu e Verônica Fabrini (professora da Unicamp e diretora da Boa Companhia) ministramos uma disciplina totalmente prática na pós-graduação do Instituto de Artes, que resultou na performance única de abstract3F28hamlet, que reunia 28 profissionais de diferentes grupos de teatro e dança de São Paulo, discutindo as nuances entre ator e performador e intérprete em cena, na ação assistida, foi um raro prazer ver Holly Cravell, Juliana de Moraes, Sílvia Geraldi, Danni Gatti, professoras e alunas, artistas e pós-graduandos, eu, Renato, Carlos Canhameiro, Zozó, Flávio Rabelo, e tantos outros, no mesmo espetáculo, coisa difícil de ver no mercado;-) E os artigos resultantes, após a vivência da linguagem na performance, os artigos não poderiam ter sido o mesmo sem a obra e sua realização. A Companhia Les Commediens Tropicales, de São Paulo, foi uma troca ótima em 2009, em que fui mais um provocador cênico da companhia, resultando na montagem 2º D. Pedro 2º, que continua viajando.
Há anos mantenho montagens de peças inéditas no Brasil, com o CHIA, LIIAA!, grupo braço artístico do meu Laboratório Interdisciplinar de Investigação e Ação Artística. Como o LIIAA, há vários núcleos de criação fortes ou sendo formados em diferentes universidades, privilegiando a experimentação e a reflexão andando juntas, visando à contundência artística – de acordo com qual é o entendimento e prática dessa contundência artística para cada indivíduo parte.
Agora, preparamos o Ivan e os Cachorros, e aí você já é parte da história [montagem a estrear na próxima edição do Cultura Inglesa Festival, São Paulo].
Quanto ao positivo ou negativo, o positivo são obras impressionantes que estão saindo das universidades, assim como o aprofundamento de obras preocupadas com a estética e com a ética, indo contra padronizações do pacto da mediocridade e discursos classistas, sexistas, racistas, fascistas, etc. Negativo seria a manutenção de preconceitos defasados e de dicotomias inócuas.
Estou esquecendo coisas, mas acho que deu pra cobrir muito do que querias.
Qualquer coisa me manda um email com alguma questão pontual ou qualquer dúvida que o toró de ideias acima tenha deixado.
ANDRÉ CARREIRA
(Diretor, dramaturgo e professor do Programa de Pós-Graduação em Teatro da Udesc)
O elemento que se destaca no Brasil onde os cursos superiores de teatro têm tido nos últimos quinze anos uma crescente presença na produção de espetáculos que conformam a cena nacional, é que as nossas universidades concentram professores artistas com presença na vida teatral de suas respectivas cidades.
Essa presença de professores artistas repercutiu na formulação de disciplinas e práticas de pesquisa que alimentam uma criação teatral que extrapola os campi. Desta forma, as tradicionais fronteiras entre a academia e a cena teatral se fragilizaram, estimulando toda uma nova geração de estudantes e docentes a consorciarem suas práticas universitárias com a realização artística aberta ao público de suas cidades.
Em algumas cidades, onde a vida profissional no teatro é restringida pela inexistência de temporadas, pouca afluência de espectadores, e até pela carência de espaços teatrais, a atividade dos departamentos de teatro, criando espetáculos e abrindo seus espaços para apresentações é decisiva para a vida teatral. Nestes casos a universidade termina por formar aquilo que podemos considerar o cerne do teatro local.
Observando a história do teatro em Florianópolis, onde sempre existiu uma atividade teatral que buscou permanentemente construir espaços para a produção local, pode-se identificar como as iniciativas do Departamento de Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) fundado em 1985, com seus cursos (graduação, especialização, mestrado e doutorado) ajudaram a conformar um ambiente de trocas artísticas e de reflexão sobre a cena.
A produção oriunda da Udesc contribuiu para estabelecer processos de estruturação de novos grupos e de redes de relacionamento entre o movimento teatral, não apenas da capital, mas também do Estado. As atividades de outras universidades também estimularam a conformação de grupos, neste sentido se destaca a Universidade Regional de Blumenau e seu Festival de Teatro Universitário.
O Departamento de Artes Cênicas e o Programa de Pós-Graduação em Teatro da Udesc além de serem ambientes de criação, também fomentam eventos (festivais, encontros, seminários e congressos) que funcionam como âmbitos de encontro dos realizadores. As publicações da Udesc e a participação dos seus docentes em eventos e cursos extra universidade colaboram com a criação de um espaço reflexivo e crítico, dado que no contexto de Santa Catarina carece-se de espaços de crítica na imprensa. Já os projetos de extensão, disciplinas práticas, e especialmente os grupos de pesquisa práticas contribuem com a realização de espetáculos que sempre estão em diálogo com um público crescente. É difícil identificar grupos com uma produção sistemática em Florianópolis que não conte com egressos ou professores da Udesc.
ANTÔNIO ARAÚJO
(Diretor, cofundador do Teatro da Vertigem, professor do departamento de artes cênicas da USP).
O início do Vertigem tem a ver com a passagem pela universidade, a USP. Há um núcleo de pessoas que conheço durante a graduação. Por outro lado, o Vertigem não começa como um grupo de teatro, mas como um grupo de estudo. A ideia era criar um grupo de estudos teórico-práticos. Lembro que uma das questões iniciais era discutir o que era pesquisa em teatro, e isso foi profundamente marcado pela nossa passagem pela universidade.
Hoje, noto que há uma mudança de perfil significativa. Dizer que o preconceito do meio artístico em relação à universidade não existe, talvez ainda seja prematuro. Ele ainda existe, mas de outra forma, menos acentuada. Ao se deparar com um artista com doutorado, por exemplo, um criador de uma geração mais experiente talvez possa olhar torto, há um ruído aí. Portanto, não poderia dizer que o preconceito está inteiramente dissolvido. Mas o contexto é absolutamente outro. Hoje, você tem vários artistas influentes, pessoas que estão, sei lá eu, na ponta da produção teatral, ligados ao teatro de grupo, elas estão dando aula em universidades. Ou são professores ou cursam mestrado, doutorado. E por conta delas há um fluxo, um trânsito entre essa produção artística contemporânea e os departamentos de teatro.
Existe um aspecto positivo nisso, certamente mais de um. Por exemplo, ambas as instâncias podem ganhar com isso: a universidade se areja, passa a incorporar nos seus currículos, no desenvolvimento da disciplina, dos cursos, ela passa a incorporar elementos dessa prática artística. Quando a graduação, no caso da USP, tem a disciplina de teoria e prática de processo colaborativo, isso é reflexo da presença dos artistas dessa cena contemporânea na universidade. Inevitável a inseminação. Por outro lado, a prática artística atual, ela também se dá em diálogo com essa perspectiva, com teóricos, pensadores da universidade. Essas pessoas levam isso para seus grupos e suas práticas, passam a tencionar, a inseminar, a polinizar a sua prática artística.
Quanto ao risco de ensimesmar-se, ele independe dessa passagem, desse vínculo, desse diálogo com a universidade. Você pode ter alguma companhia que pare no tempo, inteiramente devotado ao próprio umbigo e sem vínculo com a universidade.
Do ponto de vista prático, você pega alguns desses professores que estão hoje na universidade, Unicamp, UniRio, UFBA, Udesc,etc., você vê nessas pessoas uma prática artística que acho que está além desse ensimesmamento. São trabalhos que vão para a cidade, se colocam, envolvem o próprio entorno onde as companhias estão sediadas.
Eu acho um privilégio trabalhar com essas pessoas, num ambiente de formação, com perspectiva ligada à pedagogia. Discutir criação e pedagogia com pessoas que integram a prática de professores com a atuação artística. Sentar em reuniões para pensar o planejamento, pensar o curso, isso tudo traz uma abertura, uma visão mais arejada para as duas instâncias. É estimulante fazer parte desse coletivo de professores artistas, de encenadores pedagogos.
LUIZ FERNAODO RAMOS
(Ator, diretor, professor do departamento de artes cênicas da USP e crítico do jornal Folha de S.Paulo)
De fato, o que ocorreu é que a maior parte dos atuais grupos brasileiros é formada por egressos da universidade, ou de cursos de teatro que os encaminham naquela direção. Muitos desses artistas percebem na proximidade com a pesquisa universitária um modo de se desenvolver artisticamente, mas também encontram ali uma alternativa profissional, que lhes permite manter uma distância da lógica do teatro comercial. Essa contrainfluência do pensamento acadêmico sobre o movimento dos grupos revela uma novidade bem significativa frente à distância abissal que havia entre os grupos e a universidade nos anos 1960. Naquela época ficou célebre a tirada do Oficina que nomeava como ‘universotários’ aqueles que se debruçavam sobre a vida acadêmica. Hoje essa ideia dicotômica, de separar a prática da teoria, está vencida e a tendência é percebê-las como indissociáveis.
O fortalecimento atual é inédito. À época do Grupo Universitário do Décio, o que havia eram amadores interessados em fundar um teatro de arte no Brasil, contra o teatro comercial de fácil apelo popular. O próprio Décio era um deles que enveredou pela crítica e ali criou-se uma cumplicidade mais parecida com a do atual ‘dramaturg’ (crítico de processo” do que com a da atual relação estreita entre produção científica e arte. Décio só foi realmente para a Universidade, dedicando-se a produzir os maravilhosos ensaios que nos legou e que fundam os estudos teatrais mais aprofundados no país, quando saiu da crítica e afastou-se dos processos criativos. De algum modo essa cisão é exemplar do que foi dito antes sobre o fosso existente entre criadores e acadêmicos do teatro.
Como professor na USP, desde 1998, diria que ainda há algum reconceito, mas que há hoje uma sinergia muito forte entre os dois campos. Coordenei o programa de pós-graduação em artes cênicas por muitos anos e assisti de dentro o crescimento dessa área em paralelo ao próprio crescimento da pós-graduação em artes em geral no Brasil. É como se por conta do investimento massivo na pós-graduação por parte do governo nos últimos trinta anos, as artes tivessem apanhado um vácuo e amadurecido como área científica. Nesse sentido, o processo brasileiro é pioneiro e hoje é modelo para muitos países europeus. Com o acordo de Bolonha ,que eles fizeram lá para universalizar a pesquisa e romper barreiras entre as universidades européias, foi preciso acabar com a separação entre conservatórios, onde estariam os que sabem fazer, e as universidades, onde estariam os que prefeririam pensar. No Brasil, esse muro veio desmoronando desde o inicio dos anos 1980, tendo realmente se dissipado na última década.
(16 de abril de 2011)
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.