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Valor Econômico

A fortuna de Nelson Rodrigues

3.8.2011  |  por Valmir Santos

Teatro: Revista “Folhetim”, do grupo Pequeno Gesto, publica dossiê de críticas ao dramaturgo, cujo centenário será lembrado em 2012.

29, 30 e 31/7/2011, Caderno Eu & Fim de Semana (p. 13)

Valmir Santos | Para o Valor
A proximidade do centenário de nascimento de Nelson Rodrigues (1912-1980), em 23 de agosto do ano que vem, dá margem para revolver o inconsciente de sua obra dramática. Um exemplo de acuidade na reflexão sobre as 17 peças que esse pernambucano-fluminense autodidata escreveu em quatro décadas, a partir de 1941, são as 427 páginas do número 29 da revista “Folhetim” que aparenta o formato de um livro. A publicação organizada pelo grupo Teatro do Pequeno Gesto, do Rio, é totalmente dedicada ao artista. Mais da metade da edição especial compõe um dossiê de críticas garimpadas em jornais de época e ainda inéditas em outro suporte, exceto a recepção de Décio de Almeida Prado (1917-2000) ao clássico modernista “Vestido de Noiva”, de 1943, em temporada paulistana no ano seguinte.

 

“Causa mesmo espanto ver repentinamente surgir do nada que é o nosso teatro, quase por um milagre de geração espontânea, um autor com tanta audácia, que procura, logo nas primeiras tentativas teatrais, dominar virtuosisticamente o meio de expressão artística que escolheu”, anotou Almeida Prado. A série de documentos cobre seis décadas, desde a primeira montagem de “A Mulher sem Pecado”, de 1942, por Rodolfo Mayer, até “A Falecida Vapt-Vupt”, de 2009, por Antunes Filho.

 

As 98 críticas versam sobre 20 espetáculos, incluídas as adaptações. Envolve a percepção de 32 profissionais identificados em 15 periódicos dos acervos do Cedoc/Funarte, da Biblioteca Nacional e da Biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. Segundo a tradutora e dramaturgista Fátima Saadi, editora da “Folhetim”, as análises permitem acompanhar as polêmicas e a progressiva aceitação da obra de Nelson. A prospecção feita entre março e novembro de 2010 resulta útil também aos estudiosos de outras áreas como sociologia, história, antropologia e comunicação.

 

“Imaginei que, a partir daquele conjunto de críticas, seria possível estudar a relação entre a imprensa e o espaço público de discussão do teatro (até o “Jornal dos Sports” mantinha uma coluna de crítica teatral nos anos 1950). Esse espaço começa a minguar com o golpe militar e mais decididamente dos anos de 1980 em diante”, afirma Fátima. Transparecem o viés psicológico, primeiro prisma de aproximação das peças da fase inicial de Nelson, e o predomínio estético na abordagem pioneira de Almeida Prado, continuada por Sábato Magaldi e Yan Michalski (1932-1990).

 

Um exemplo de aproximação atemporal. O jornalista Frederico Guilherme Chateaubriand, de alcunha Freddy, escreve no “Diário da Noite” carioca, em 1950, que “Doroteia” é “extremamente poética”, indignado com “quem confunde duas realidades que nada têm de comum”: a poética e a propriamente dita. A crítica e pesquisadora Mariangela Alves de Lima argumenta sobre “A Falecida Vapt-Vupt” em “O Estado de S. Paulo”, em 2008, que Antunes privilegia “o imaginário poético contido nessa peça e deixa em fervura baixa, como lava, o ódio e o fascínio sexual”. Entre os demais nomes focados estão Alberto Guzik, Jefferson Del Rios, José Arrabal, Luiza Barreto Leite, Macksen Luiz, Miroel Silveira, Paschoal Carlos Magno, Paulo Francis e Sérgio Augusto.

 

Diretor do Centro de Pesquisa Teatral e do Grupo Macunaíma, Antunes discorre em longa entrevista sobre suas montagens rodriguianas desde 1965, com “A Falecida”, junto a alunos da Escola de Arte Dramática (EAD), passando pela paradigmática montagem de “O Eterno Retorno”, de 1981, reunião de “Os Sete Gatinhos”, “Beijo no Asfalto” e “Toda Nudez Será Castigada” – estruturadas sob o conceito do inconsciente coletivo do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961).

 

A tradução, a criação e a recepção crítica do dramaturgo na França são discutidas em artigos como o do diretor Alain Ollivier, morto no ano passado, e em entrevista com Ângela Leite Lopes, tradutora e professora da UFRJ. Outros ensaístas brasileiros dão lastro à diversidade de enfoques nesse painel que não se quer exaustivo, como observa Fátima, mas amplo no que se tem pensado sobre Nelson Rodrigues nos últimos anos.

 

Lançada na quarta-feira no Teatro Glaucio Gil, em Copacabana, “Folhetim” custa R$ 35,00 e pode ser adquirida por reembolso postal (folhetim@pequenogesto.com.br). No dia 23, o Pequeno Gesto entrou em cartaz com seu espetáculo mais recente, “AntígonaCreonte”, que será apresentado até segunda-feira. Trata-se de uma adaptação livre da tragédia de Sófocles pelo diretor Antonio Guedes, com quem Fátima compartilha duas décadas de grupo e 13 anos de revista, dois atos de resistência filosófica e artística.

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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