Valor Econômico
14.7.2012 | por Valmir Santos
Valor Econômico, 5/7/2012, Caderno Eu & Cultura
Por Valmir Santos | Para o Valor, de São Paulo
Dependente químico, rockstar de 27 anos se suicida com um tiro na cabeça e deixa um bilhete aos que ama. Pinçada do universo pop, uma história assim está condenada a lugares-comuns. E é deles que o monólogo Aberdeen – Um possível Kurt Cobain tenta escapar ao fixar-se na figura humana por trás do expoente grunge e vocalista da banda Nirvana.
O ator Nicolas Trevijano, o diretor José Roberto Jardim e o dramaturgo Sérgio Roveri evitam os bastidores da carreira, jogam para o rodapé da história a tumultuada vida pessoal e projetam na ficção a mente de um sujeito inquieto, melancólico, irônico e autoquestionador. Um rapaz ávido por interlocução sincera como a devotada na infância ao amigo imaginário Boddah. É essa intimidade que os criadores da peça também esperam alcançar com o público na temporada de estreia na Galeria Olido, em São Paulo, a partir de sábado.
A proximidade não se quer apenas física, com 50 cadeiras dispostas no palco em semiarena. Tem a ver com a opção minimalista na interpretação, no texto e na encenação. Estruturado como uma partitura, a narrativa flui em cinco movimentos que independem da cronologia dos fatos. Tudo se passa no post mortem, o hiato de cerca de 72 horas entre o disparo e o dia em que o corpo é encontrado na estufa do casarão onde Cobain morava, em Seattle, 8 de abril de 1994, quando a notícia da tragédia varreu o planeta.
O homem/personagem costura reminiscências da pequena Aberdeen, a fria cidade americana cravada entre montanhas, onde vive na infância e toma conhecimento do histórico de suicídios na família. Fala de desajustes da adolescência por quem é idealizado pela juventude mundo afora, no que desmitifica. As overdoses de heroína. Os conflitos com o pai e a mãe. O afeto pela filha Frances, então com quase 2 anos em sua morte, do casamento com Courtney Love. E a relação com o amigo imaginário a quem confessa suas culpas.
“O texto parte dessa condição de quem espera que o próprio corpo seja encontrado e, ao mesmo tempo, está se encontrando. A gente se interessou mais pelo lado humano dessa personalidade reclusa, solitária, que raramente tomava banho ou trocava de roupa e tinha o estranho hábito de criar ratos”, diz Roveri. Ele pesquisou biografias, documentários e discos do Nirvana.
Para interpretar Cobain à margem dos gêneros musical ou biográfico, Trevijano, idealizador do projeto, se despe da imagem planetária do cantor e guitarrista de camisa xadrez de flanela, cabelo loiro e desgrenhado, voz rouca. “Desde o início das nossas conversas, há dois anos, a ideia era trazer à cena um cara que não fosse necessariamente o Kurt Cobain, mas um ser à procura de respostas na vida”, diz Trevijano, que já atuou em outra peça de Roveri, A coleira de Bóris (2008).
A fragilidade de existir corresponde à precariedade do espaço cenográfico. Há um aparelho de som, um espelho, quatro abajures e um retroprojetor sem uso de slides, irradiando feixe de luz. O diretor delega ao ator não só a manipulação desses objetos, como a própria operação de luz.
“Não criamos um teatro ilusório. A mimese [imitar gesto, voz, estilo] poderia soar histriônica, um convite ao melodrama banal. Simplesmente centramos nas facetas desse polígono que é o ser humano, no caso, o Kurt Cobain, capaz de falar a qualquer um”, afirma Jardim. Esta é a primeira direção que assina, trabalho paralelo ao seu grupo Os Fofos Encenam. Amigo de Trevijano desde os 11 anos, também já interpretou uma peça de Roveri, O encontro das águas (2004).
Coerente com o campo da desilusão, o espetáculo abre poucas brechas sonoras para canções do compositor de Smells like teen spirit, com três a quatro faixas lado B. A direção cuida ainda em não moralizar a questão do suicídio. “A ironia é um tipo fecundo de humor inteligente diante das dificuldades. Nunca vi o suicídio como sinal de fraqueza atroz, de falta de coragem. Tampouco caímos no erro fácil da superioridade do sujeito que chegou ao cume da montanha e vem iluminar os pobres mortais. Seria arrogante.”
Nessa equalização de linguagem, como define Jardim, seu desejo é valorizar o ato presente, o instante da experiência compartilhada entre o artista e a plateia. “Aberdeen” busca a “presentificação” em vez da representação.
Aberdeen – Um possível Kurt Cobain
Galeria Olido – sala Olido (av. São João, 473, 2º andar, SP, tel. 11/xx 3397-0176); sáb., às 21h; dom., às 19h; grátis; de 7 a 29/7 (a partir do final de agosto, segunda temporada de cinco semanas no Teatro Cacilda Becker, Lapa)
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.