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Reportagem

Bom Retiro 958 metros

26.8.2012  |  por Valmir Santos

O ator Roberto Audio na intervenção do Vertigem

O ator Roberto Audio na intervenção do Vertigem

O Teatro da Vertigem chega aos 20 anos ruminando a questão que lhe é cara desde o início: o lugar do teatro na cidade. As duas pontas desse ciclo vão do sagrado à dessacralização – uma igreja católica em O paraíso perdido, em 1992, porta de entrada para a Trilogia Bíblica, e um edifício teatral abandonado em Bom Retiro 958 metros, abrigo dos espectadores na reta final da intervenção que ocupa ainda corredores de um shopping de varejo, ruas e esquinas do bairro do centro velho de São Paulo.

A fixação por espaços não teatrais, quem diria, acaba subvertendo o próprio palco italiano do Teatro de Arte Israelita Brasileiro (TAIB), além de seu fosso, plateia, saguão e fachada. No mesmo edifício da rua Três Rios funcionava a outrora Casa do Povo, como era conhecido o Instituto Cultural Israelita Brasileiro, erguido nos anos 1950 e voltado a ações educacionais, culturais, políticas e comunitárias. Esse lugar, hoje fantasmagórico, serve ao Vertigem e à dramaturgia de Joca Reiners Terron para criticar a sociedade do consumo e as tensões urbanas segundo memória e presente do tradicional bairro do comércio de roupas, sua afluência multicultural e seus subterrâneos ilegais. É nessa sequência final que a cidade deságua em suas podridões material e simbólica. Antes disso, há o deambular.

Do trajeto do shopping às ruas, estão apontados os indícios fabulares de uma mulher obcecada pelo vestido vermelho da vitrine. O expediente já se encerrou e vêm à tona os bastidores dessa engrenagem: a faxineira noturna, os carregadores de mercadorias, o manequim que ganha vida, a costureira de oficina clandestina, etc. A ilusão jaz tão saturada nesse tipo de centro de compras, mesmo com o néon apagado, que a alegoria do teatro musical num corredor de lojas, arremedo de número com plumagem, e a apropriação dos respectivos interiores e vitrines acabam soando tão anestesiantes quanto a artificialidade ali instalada.

O conjunto artístico conhecido por cravar arte pública em lugares específicos, ocupando igrejas, hospitais e presídios, singrando o rio Tietê, esbarra justamente no templo do consumo. É como se a grande narrativa do capitalismo aqui resistisse intramuros, impondo outras formas de negociação que o Vertigem não consegue furar porque enfraquecido em sua viga mestra: os atores. Da formação mais longeva, permanecem Roberto Audio, salvaguarda da poética do grupo, interpretando Cracômano rente ao asfalto realista e a violência na urbe, e Luciana Schwinden, com atuação embotada como Consumidora, de presença por si sonambular. Boa parte dos demais intérpretes deixa a desejar quando não em coro, reféns das autovigilantes marcações nesse tipo de cena processional, em estações. Falta crença verbal: quando próximo do espectador e instado ao diálogo ou solilóquio, as palavras enunciadas muitas vezes não equivalem à força da imagem que as emoldura, mesmo com o uso de microfones. Não é diferente do lado de fora, diante das alteridades nas ruas e calçadas. A percepção, aliás, é de uma criação na qual o texto é cena e a palavra, mero subtexto. A dramaturgia, por sua vez, fica a reboque da intervenção, não evidencia a condição autônoma presumida na aventura colaborativa, excetuando a solidez do roteiro traçado para o dependente químico de Audio e sua espantosa clareza de aflição.

A intervenção pública é estratégia adotada pelo grupo desde BR-3, no Tietê, além de A última palavra é a penúltima (passagem subterrânea da praça Ramos) e Cidade submersa (terreno da antiga rodoviária na Luz). Esses trabalhos sublinharam as conceituações do designer de luz Guilherme Bonfanti quanto ao redimensionamento espacial a partir de arquiteturas, suportes e volumes que estão dados. Ao lado de Amanda Antunes e Carlos Teixeira (direção de arte) e Kako Guirado (desenho de som), entre outros, eles convertem o percurso externo de Bom Retiro em substancioso texto de imagens visuais e sonoras. O espectador é guiado por essa leitura sensorial.

Quando Cracômano surge sob as grades do pátio do shopping, é a partir dali que o espetáculo passa a conectar. Em suas falas alucinantes, plasmam as ruínas da cidade em torno da sua pedra fundamental, que não é a da especulação imobiliária, mas a do crack. A condição de margem vai ao epicentro da narrativa. E a paisagem prepondera em seus enquadramentos factuais ou ficcionais, modificados por instalações, nichos e trânsitos de toda ordem.

Na concepção do diretor Antônio Araújo, a rua é descortinada como num processo de edição audiovisual. As cenas avançam ou estacionam nas frestas do cotidiano: o bar, o ponto de táxi, o supermercado, o ônibus, os pedestres. A arte vai se imiscuindo. Há o “set” do beco da muralha, quando Cracômano delira com seus fantasmas e inclusive escala o paredão. Há o “set” do desfile de modelos numa encruzilhada, em meio aos carros e semáforos. Noutra esquina, há o “ringue” improvisado para as duas moças que se atracam por motivo patético: elas usam exatamente a mesma roupa, até que selam o embate com um beijo por meio do qual puxam de suas bocas o fio de linha dessa indústria têxtil e a desnudam a codependência da moda.

Tais inserções garantem o fluxo de ideias e sentidos apoiados em composições sofisticadas e precárias (na perspectiva artesã) do espaço público. Como na voz da locutora de rádio madrugada adentro, e cujo corpo itinerante desponta em fachadas aqui e acolá. Ou na gradação dos cartazes dependurados em manequins humanos com as porcentagens crescentes dos descontos em liquidação, antinomia da desvalorização do viver na metrópole (um dos indícios de que o impacto das cenas dentro do shopping é inferior ao produzido ao ar livre). São geniais os momentos em que a luz noturna é transfigurada pelas lâmpadas dos postes tapadas à mercê das ações que podem tomar o quarteirão.

Como nos movimentos de uma grua, essa caminhada prepara muito bem os momentos lancinantes reservados para a ocupação do teatro, quando caem as fichas estruturais da proposta. A pedra “invisível” de Cracômano evolui de tamanho ao longo dessa jornada, culminando uma deus ex-machina às avessas, que desce ao centro do palco da casa de espetáculos semidestruída, o inferno, e não ascende aos céus, como ocorria nas tragédias gregas. A imagem imponente dessa rocha materializa os obstáculos no meio do caminho dos citadinos de todas as laias. O empobrecimento da vida comum, da qual o teatro se alimenta, é proporcional ao fetichismo da ordem do dia.

Ao operar a parte final como metateatro, Bom Retiro 958 metros incorpora física e espiritualmente o combalido TAIB, considerando o seu passado cultural. É nesse ambiente puído, de poltronas vermelhas danificadas, assoalho de cimento cru, tablado corroído, saguão empoeirado, enfim, é no ventre desse navio encalhado que o desencanto pelos rumos da convivência em comunidade se manifesta veemente. O discurso direto na voz daquele que está à margem e no coração da cidade – o Cracômano – escancara o beco sem saída dos tempos que aí estão. Na penumbra literal desse palco, a paródia do musical funciona de maneira corrosiva com a coreografia dos esfarrapados (mais uma vez, contrastando o lugar-comum nos corredores do shopping, no início). Assim como no surgimento do agigantado vestido vermelho em chamas, objeto do desejo e da cegueira.

São nesses rescaldos que as almas e os fantasmas errantes veem seus desesperos espalhados. Até os agentes sanitários enxotarem todos do teatro, o espectador incluído, ratificando o enobrecimento urbano. Não por acaso, o prédio é colocado à venda, ato derradeiro que torna ainda mais explícita a configuração de manifesto político do trabalho.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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