Entrevista
A entrevista com o bailarino, coreógrafo e ator Augusto Omolú (1963-2013) aconteceu em agosto de 2012, na sede do grupo dinamarquês Odin Teatret, em Holstebro. Ele morreu no dia 2 de junho passado. O corpo foi encontrado esfaqueado em sua casa, em Lauro de Freitas, cidade da região metropolitana de Salvador. Um mês depois, familiares e amigos protestaram pela efetiva apuração do crime que a polícia baiana diz ainda investigar.
Augusto José da Purificação Conceição tinha 50 anos. Um dos seus legados é o da afirmação da dança popular e de ascendência africana. Daí os fortes laços com a cultura do candomblé, como dão prova a coreografia Dança de origem (1988), de sua autoria, justamente a gênese do Balé Folclórico da Bahia. Ou a consciência técnica da dramaturgia do movimento por meio da Dança dos Orixás depurada no convívio artístico com o grupo dirigido por Eugenio Barba.
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Quando o repórter desce as escadas que levam ao andar térreo do espaço do Odin Teatret, encontra o bailarino e ator Augusto Omolú conversando na área administrativa com um dos assistentes do encontro Odin Week Festival. Eles comentam os reflexos da jornada dos participantes imersos na programação daqueles dias. As forças físicas e interior são essenciais aos treinamentos que o baiano de Salvador aplica em quatro das dez manhãs de atividades diuturnas, despertando os corpos e mentes pontualmente entre 7h e 8h.
Na entrevista a seguir, Augusto Omolú narra sua formação com passagens na década de 1970 pelo Balé Folclórico do Sesc, dirigido por Mestre King; pelo grupo Viva Bahia, pela professora Emília Biancardi; e pela Escola de Dança do Teatro Castro Alves.
O encontro com Eugenio Barba e o Odin Teatret o despertou para decodificar a chamada Dança dos Orixás. Lá se vão duas décadas de estudos e práticas corporais inerentes às tradições afro-brasileiras que fazem parte de sua tradição familiar, conjugando as dimensões artística e espiritual. Ele foi introduzido à cultura do candomblé desde a infância, brincando em terreiro.
É membro colaborador da Escola Internacional de Antropologia Teatral, a ISTA, na sigla em inglês, e atua em espetáculos dirigidos por Barba, como Orô de Otelo (1994) e O sonho de Andersen (2004). Leva seu seminário de Dança dos Orixás a vários países. Em agosto de 2011, em Buenos Aires, havia 120 participantes. Anualmente, ele faz o mesmo seminário em Salvador, antes do carnaval. Há mais interessados vindos de outros países do que artistas e pesquisadores conterrâneos, o que o frustra um pouco, mas reflete a repercussão internacional do seu trabalho junto ao Odin Teatret.
Augusto Omolú – [conversando com um assistente] Depois que saem da universidade, eles terão que se virar sozinhos. E como é que vão buscar outro material, a sustentação? Como vão se alimentar disso? Eis o grande problema. Quando ocorre um seminário como este [o Odin Week Festival], profundo, num tempo maior, que os permite construir e conhecer suas próprias capacidades fora da condição acadêmica, aí começam a crescer. Tudo está relacionado a um processo de construção. De construir uma grande família de pensadores. A gente trabalha em cima da dramaturgia dos movimentos dos orixás, que pertence à religião do candomblé. Dentro dessa dramaturgia há conteúdos importantíssimos para a formação de uma consciência tanto do ator como do bailarino, do artista em geral. Esse trabalho ajuda na vida cotidiana, que por sua vez está relacionada à profissão, à cidadania. Essa intimidade interna te faz compreender outras capacidades.
Teatrojornal – É como ter uma visão sistêmica?
Augusto – Uma visão sistêmica do corpo com o ambiente. É assim a arte. Você começa a ficar mais à vontade com suas competências e capacidades. Isso para mim é fantástico. Cada vez mais vou mergulhando e descobrindo condições, como se não houvesse fim.
Teatrojornal – Nesses quase 20 anos de contato com o Odin, como define algumas etapas dessa experiência?
Augusto – Ainda continua sendo uma experiência (risos). São várias etapas. Você passa por tantas que, depois, você olha e parece que ainda não construiu nada. Você se sente cada vez mais distante do que quer. Como se tivesse uma grande ambição interior, artística, que faz com que essas etapas se ampliem, aumentando essa ansiedade. Cada etapa tem sua história, serve de referência. Quando começo a trabalhar uma turma nova, sempre lembro de coisas antigas que me fazem renovar. Com certeza, daqui a dois anos vou lembrar coisas deste ano. É uma soma.
Teatrojornal – A Dança dos Orixás transpõe para a cena elementos do candomblé?
Augusto – Não se trata de transpor o candomblé para a cena, sou contra isso. Costumo falar aos meus alunos que sou contra imitar os orixás. Quando eu era pequeno, imitava porque era uma criança, por instinto. Mas, hoje, vejo que não. Essa cultura está no meu corpo, é isso que faço. Lá em Salvador, às vezes vejo artistas dançando os orixás como se estivessem manifestados. Manifestado em que sentido? Em fazer caras e bocas, estereótipos. Agora, se você estudar essa cultura com uma outra visão, é bem diferente. Eu levo para a cena a dança já transformada, mas fica uma coisa dentro dela que é a essência. Na demonstração que a Julia [Varley] fez neste encontro, ela não disse “ande como um bailarino”, ela disse “ande como Ogun ou ande como Iansã”. Esses nomes de referência não quer dizer que estou andando como orixá, mas pegando a energia dele. Uma energia que aparece por meio da conduta, de como se comportar em cena. Isso é o contrário de botar o candomblé em cena. Isso é para mostrar que existem outros poderes e outros valores que vão contribuir muito para o desenvolvimento da cultura afro-brasileira. As pessoas precisam ver o candomblé com outros olhos, não só em sua parte religiosa, mas, sobretudo, em sua parte cultural. Temos uma leitura, uma explicação, um sentido, enfim, maneiras de estudar e beneficiar a vida profissional por meio da arte. Manter a religião distante, às vezes como uma maneira de protesto, fez a gente perder muito. Por isso a desinformação da nossa cultura geralmente veiculada por igrejas protestantes, evangélicas. E você, como negro, termina até se isolando, discriminando uma coisa que é sua, é sua identidade. Sem isso, você é quem? Qual sua identidade cultural? Quem é você?
Teatrojornal – Temos a ancestralidade africana…
Augusto – Não se pode mudar a história. Por isso é preciso trabalhar uma visão diferente. Não estou dizendo que é obrigado a entrar na religião do candomblé. A abordagem dessa dramaturgia do movimento em termos de conteúdo, e não apenas da forma, tem sido uma novidade no Brasil e aqui na Europa. Está sendo um grande desafio trabalhar isso no Brasil, em Salvador. Eu tenho que vencer todos os obstáculos. Um ego muito grande, porque a maioria se acha o pai de santo, a mãe de santo, o tio de santo, o avô de santo. É como se o santo não existisse para eles, mas apenas eles mesmos. Todos são tão donos que deixam o santo sem espaço. E não conseguem enxergar outra coisa.
Assistente [que permanece nos ouvindo na mesa] – Para a tradição não virar religião e, com isso, palavra morta, ela tem que continuar evoluindo.
Augusto – Tem que evoluir. Por exemplo, o Carlinhos Brown trabalha com a música de candomblé o tempo todo. Até a Daniela Mercury ou a Margareth de Menezes durante o carnaval, em cima do carro elétrico. Por que a dança não pode? Isso para não falar dos escritores, como o Pierre Verger [francês que exaltou a cultura do candomblé por meio da fotografia]. Hoje, só não monta o candomblé quem não quer. Há livros para você abrir terreiro com todos os fundamentos. Tanto em relação às coisas ruins como às coisas boas. Até na internet. Agora, só está faltando vender ebó [sacrifício ou oferenda oferecidos aos orixás] congelado no supermercado (risos).
Teatrojornal – O que significa a expressão “orô”?
Augusto – Orô é uma homenagem, uma festa, um nome. Orô de Otelo [o espetáculo] é como oferecer uma festa a você, uma homenagem a você, Esse processo de criação começou em 1993 e estreamos no ano seguinte, durante a ISTA realizada em Londrina (PR). É fruto de uma demonstração, não era propriamente um espetáculo. A ideia era construir uma demonstração representativa do Brasil. Essa demonstração foi tomando corpo ao longo dos anos. Levei pelo menos um ano, dois anos digerindo…
Teatrojornal – Digerindo esse admirável mundo novo…
Augusto – Exato. Para mim ainda era uma coisa que não funcionava. Eu vinha de uma outra área, da dança de balé clássico, de uma companhia oficial [o Balé do Teatro Castro Alves, em que atuou entre a década de 1980 e o início da de 1990]. Levou um tempo para eu tomar posse disso tudo. Até que aquilo começou a fazer parte de mim, fui buscando em mim mesmo um poder dentro desse espetáculo. Ele poderia não existir hoje se ainda tivesse com a conotação de uma demonstração. Foi ficando claro para mim que estava fazendo um espetáculo. Fui buscando a cada ensaio. Quando começo a fazer Otelo, sinto-me dentro de tudo, possuído por Otelo, por Desdêmona. Já entro muito forte dentro do diálogo deles. Não sei se sou a pessoa que está representando; sou a pessoa que está sendo. Não consigo ver de outra forma. Aquele momento do diálogo em que Desdêmona está se preparando para receber Otelo, e ela já sabe que vai morrer, mistura-se um pouco de Oxum com Iemanjá, toda vaidosa diante do espelho, com seus longos cabelos e tal. Quando estava fazendo aquela cena, percebi que já fazia Oxum sem saber que era Desdêmona. Quando o pai de santo Eugenio me deu esse cargo (risos), o babalorixá, então OK, tive que incorporar. O espírito já existia, eu já tinha trabalhado a qualidade, era só colocar um nome. Começamos também a fazer uma improvisação com a Oxum. No final, naquele momento em que Otelo começa a discutir, ameaça que vai matar com toda a ira dele, ali resultou de um processo de improvisação, de utilizar toda a energia da Oxum de outra maneira. É como se eu já tivesse esse alfabeto. Como é o comportamento de uma mulher vaidosa e tal? Fui buscando por meio de laboratório. Para isso tudo, é importante você ter o fundamento. Sem ele, não se pode criar do nada. Uma imagem é fundamental, por exemplo. Trabalhar com alguma coisa, criar alguma coisa em sua mente para elaborar uma verdade para você. É um instrumento. Se você não cria nada, vai passar uma mentira para o espectador. Não passa nenhuma energia. O espectador se percebe igual a você. É preciso seduzi-lo, criar condição de forças, ser realmente poderoso, um bruxo, e ter alguma coisa para dizer. Já fui a muitos espetáculos em que entrei e sai do mesmo jeito. Preferia ter ficado em casa assistindo à televisão. Então, Otelo trouxe-me tudo isso. Otelo é meu carro-chefe. Quando sinto alguma dificuldade, sei que vou encontrar respostas em Otelo. Se faço Otelo, descubro uma resposta do que eu quero. Isso quando estou distante. Quando estou aqui [Holstebro], vou ao guru, ao pai de santo (risos).
Teatrojornal – Em algumas fotos de divulgação de Orô de Otelo constam músicos acompanhando em atabaques. Aqui a gente assistiu sem acompanhamento musical ao vivo.
Augusto – O Orô é feito com música ao vivo, idealmente. Surgiu com o formato de acompanhamento de três músicos, como ocorre no ritual do candomblé. Você tem os três atabaques (grande, médio e pequeno) com os três ogãs que tocam e cantam. Na concepção do Eugênio, a história do Otelo se casaria com a minha própria história, por isso entro vestido de branco. Além de ter uma formação em dança clássica e moderna, eu venho primitivamente lá do candomblé, da religião. Daí a junção de um negro clássico com a ópera e os atabaques. Resultou um bom casamento. No enredo, um negro entra em cena lendo um livro e durante essa leitura, ele se vê lá dentro, repassa toda sua história, a sua cultura, a sua vida. A manifestação inclui a ópera, o orixá e outras expressões que compõem essa miscelânea.
Teatrojornal – Hoje, quando você tem consciência de onde você está e com quem dialoga, interage, é diferente do Augusto dos primeiros anos, quando estava tateando. Como você percebe a sua colaboração dentro da estrutura atual do Odin, do pensamento e da filosofia do grupo? Como você se localiza nessa nau?
Augusto – Como também um contribuidor. Entrei aqui como um colaborador e agora me sinto justamente como um colaborador. Contribui assim como todos os integrantes contribuem comigo também. Aumentei minha visão das artes cênicas, assim como trouxe para eles um leque de possibilidades. É como se houvesse as células de cada um. Cada um dos atores tem uma história aqui dentro. Essas diferenças fazem uma diferença. E o Eugenio trabalha muito com as indiferenças. Ele gosta de coisas assim. Isso me interessa: sinto-me como mais uma das pessoas portadora dessas células, corresponsável pelas linguagens que partilhamos em vários lugares do universo. Já levamos a Dança dos Orixás à China, por exemplo. Existe uma identificação muito grande mesmo quando as pessoas não conhecem os orixás. Não é a cultura dos chineses, mas é como se os orixás estivessem presentes em todas as culturas do mundo. Porque os orixás representam elementos da natureza, e ela é universal. Não está só na Bahia, na África: está no mundo. Quando falamos dos orixás, falamos do tempo, das folhas, da água, do ar, do fogo… Isso está em todo lugar. Quando começamos a trabalhar a energia dos movimentos e damos as codificações, relatando a forma dos orixás se comunicarem, dialogarem, as pessoas começam a se identificar com aquilo. É como se você tivesse falando da tua personalidade, de como você é. Ao falar de Ogun, por exemplo, esse guerreiro que está lutando o tempo todo para sobreviver, inevitavelmente estamos falando de qualquer espectador que batalha muito em seu cotidiano. Com os orixás, é sim ou não, vida ou morte, o que pressupõe uma postura guerreira de defender o que se quer. Isso também corresponde ao lado espiritual.
Teatrojornal – Que elementos dos orixás você levou para a criação de Orô de Otelo?
Augusto – Levei vários elementos. Quando crio um personagem, tenho que estabelecer relação com todas as energias dos orixás. Por exemplo, o comportamento do Hamlet é uma história antiga, mas pode ser possuída por um espírito novo, segundo minha contemporaneidade [ele viveu o papel-título na remontagem do Odin para Ur-Hamlet, em 2009]. Quando entro, faço um Ogun, depois um Xangô, um Erê, um Exu, um Oxóssi, enfim, uso tudo isso. Perguntava-me: o que posso fazer para criar? Eugenio me deu muita coisa para ler, compreender. Criei um ou outro material, Eugenio recusava. Formalizava alguma coisa, ele ia lá e bagunçava, mas depois essa bagunça acabava resultando melhor. Enfim, entrávamos nessa viagem.
Teatrojornal – A sua história pessoal, desde menino, e a sua história artística acabam sendo responsável pela conceituação dessa leitura da Dança dos Orixás.
Augusto – Exato. É um compromisso. Para mim, foi um grande desafio o encontro com o Eugenio, assumir estar trabalhando com ele. Estar aqui hoje é um desafio, estar em Salvador é um outro desafio. Quer dizer, não é que ele esteja no mesmo desafio, está em outras histórias. Mas, para mim, que faço parte dessa cultura, o tempo todo é desafio de buscar provar uma possibilidade de linguagem especificamente brasileira, entre as muitas possibilidades que temos. O tempo todo a gente pensa em buscar fora. Depois que eu sai do Brasil e estou aqui, conclui: “Mas eu tenho isso lá!”. Gostaria muito que todos os brasileiros tivessem essa consciência, que isso fosse base para valorizar aquilo que está lá. É como se eu dissesse: “Gente, olha, aquilo que está aí é muito bom!”. Alguém de fora tem que dizer. É aquele ditado: santo de casa não faz milagre. Muitos brasileiros vieram fazer essa Dança dos Orixás aqui, na Dinamarca, e não foi nem durante o Odin Week, foi num curso que organizei aqui. Muitos brasileiros estudaram comigo aqui, mas lá [em Salvador, por exemplo], dificilmente aparecem. Gastam muito para estar aqui, mas por que não trabalham isso lá? Por exemplo: dei um seminário para quase 60 pessoas em Salvador, em 2012, e apenas cinco delas eram brasileiras. Em plena Bahia. No ano anterior, entre as 40 pessoas, havia apenas duas brasileiras. Havia muitos argentinos, chilenos, mexicanos, espanhóis, italianos, franceses, americanos, etc.
Teatrojornal – Conte um pouco das suas origens familiares.
Augusto – Fui criado praticamente dentro de terreiro. O menino de 8 anos brincava no próprio terreiro de Guilherme Ijexá, onde fui confirmado para Ogun. Atualmente, o nome do terreiro é Ilê Ifá Demin. Eu tive uma infância dentro desses limites. Quando não estava com minha família normal, estava com a minha família do candomblé. E como gostava mais de ficar lá no candomblé, na roça, tinha o pai de santo como o meu segundo pai. Eu ia com Guilherme para a feira, para fazer ebó, para fazer santo em outras casas, enfim, ele me botou como a segunda pessoa no trabalho dele. Hoje, após a morte dele, eu tenho cargo, sou a segunda pessoa da roça [terreiro], pode-se dizer o babalorixá da roça. Só que ainda não assumi esse compromisso porque ainda acho muito cedo. Ainda tenho compromisso com a minha arte que amo tanto. E também sou daquela época muito antiga, preservadora. Ainda acredito em muita coisa daquela época. Sinto que hoje há muita modernidade dentro do próprio candomblé, há muito comércio. Naquela época não se pagava tanto para se fazer santo nem para jogar búzios. Hoje, é dinheiro para tudo. Criou-se um grande comércio, uma grande ambição em ganhar dinheiro no candomblé, e também para atrair turista. Não me sinto ainda capacitado para assumir um terreiro, deixar toda minha arte, tudo que estou querendo produzir ainda, para ficar dentro de um terreiro, como deve ser – se tiver que assumir, tem que estar lá dentro, e não em outro lugar, para poder servir aos orixás e a todas as pessoas. Isso pode acontecer bem mais tarde, quando tiver 70, 80 anos [hoje ele tem 50 anos]. Faço minhas obrigações como posso, com meu santo, mas assumir um terreiro agora, não. Sei que tenho esse compromisso, orixá sabe disso.
Teatrojornal – Você carrega a religiosidade como espaço de criação…
Augusto – Elas caminham paralelamente. Não posso abdicar, senão a coisa pega.
Teatrojornal – E a sua família?
Augusto – Eu tenho dez irmãos. Sou o terceiro. Três mulheres e sete homens. A maioria vive em Cidade Nova, bairro de Salvador, à rua Vinte e Cinto de Dezembro, número 59. Nasci no Itororó, depois fui morar na Liberdade e agora na Cidade Nova. Comprei uma chácara em Buraquinho, na Estrada do Coco, próximo a Lauro de Freitas, no caminho para o aeroporto, e lá faço o meu terreiro, o meu espaço em que durmo, moro com minha mulher e onde realizo os seminários [pai de três filhos, vive o terceiro casamento, agora com a escritora italiana Lisa Ginzburg, mãe da caçula Alina, de 3 anos – os outros dois mais velhos são Gustavo e Luana]. Espero fazer desse lugar fonte de pesquisa sobre a dramaturgia da Dança dos Orixás, com base na antropologia teatral.
Teatrojornal – Teve alguma influência artística na família? Como foi parar no balé do Castro Alves?
Augusto – Quando adolescente, tinha uma vontade muito grande de fazer capoeira. Estudava numa escola perto do Sesc, onde tinha sempre um curso de formação de capoeira, de cabeleireiro, etc. Estudava no Severino Vieira, fazia o colegial, e minha irmã estudava no Senhora de Nazaré, que era ali perto. Ela resolveu fazer o curso de cabeleireira. Resolvi então acompanhá-la para irmos e voltarmos juntos, e fui fazer capoeira. E dentro do curso de capoeira havia um grupo folclórico. Comecei a participar dele. O mestre King, o professor, começou a me ver também como dançarino de orixá, porque eu já trazia isso desde pequeno. Quando vi que estava dentro desse grupo, o Grupo Balú, fazendo capoeira, no qual também tinha dança de orixás, comecei a dançar candomblé, maculelê e samba de roda. Era aluno, fazia apresentações também no Pelourinho. Em paralelo, estudava artes também no Severino Viera, e lá tinha aulas com a professora Emília, uma musicóloga maravilhosa. Ela fez um teste para levar gente do grupo do Severino para a Alemanha junto com o Viva Bahia, um grupo folclórico dos mais antigos de Salvador. Comecei a participar desse grupo, passei no teste e viajamos para a Alemanha. Foi minha primeira viagem, tinha 13 anos, minha mãe teve que autorizar. Por coincidência, dancei Omolú naquela viagem. Eu dançava muito bem Omolú, dançava bem todos os orixás, mas a professora achava que Omolú eu dançava melhor que todo mundo. Naquela época, dancei com as palhas, nu por baixo, a “periquita” ficava parecendo um botão (risos). Era frio, dançava na praça. Era um festival brasileiro que estava acontecendo. Quando voltei, comecei a trabalhar mais, a correr a Bahia, e aí tinha que ter um registro de artista, precisava ter um apelido artístico. Então, como ela já me chamava o tempo todo de “Omolú, Omoluzinho”, ficou Augusto Omolú. Por outra coincidência muito grande, quando nasci, em casa, a madrinha que me batizou, a Maria de Lurdes, recebeu a entidade Omolú justamente na hora do meu parto que estava ajudando a fazer.
Teatrojornal – O que caracteriza o orixá Omolú?
Augusto – Omolú é um guardião do cemitério, dos mortos. Ele representa também a medicina. A saúde e a doença, a vida e a morte. Ele tem todo um poder de cura, tem muito a ver com a minha natureza. Tem a ver também com a fartura, com a proteção, é um orixá muito forte. O dono da minha cabeça é Ogun, mas na minha frente, no dia a dia, está Omolú, ele tomou espaço. Na minha vida profissional, Omolú está na frente. Na minha vida cotidiana, estão Ogun e Iemanjá. Às vezes estou muito guerreiro, então ela joga água no brinquedo. Não sei se é um defeito ou virtude: eu gosto muito de trabalhar. Não paro nunca. O tempo todo estou querendo, é como se o combate fosse o meu alimento. Não consigo aceitar nada tranquilo, tem que ter um sacrifício, tem que lutar. As coisas acontecem com muita dificuldade para mim, mas quando não acontece, eu busco.
>> O jornalista viajou a convite da organização da Odin Week Festival
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Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.