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Reportagem

Pensata: Rio Preto e crise de representatividade

17.7.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Ricardo Boni

Encontro que tem demonstrado vocação para discutir, refutar ou inovar o estatuto da representação nas artes cênicas, o Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto expôs na última edição, encerrada no fim de semana, a sua própria crise de representatividade.

Artistas locais e os realizadores, a prefeitura e o Sesc São Paulo, enfrentam contradições de identidade no evento cuja versão internacional existe há 12 anos, mas a tradição do festival soma 44 anos: da gênese amadora, por iniciativa de artistas locais, ao destaque competitivo e panorâmico da cena brasileira em pleno oeste paulista durante as décadas de 1980 e 1990 – no intervalo de 1973 a 1980 não houve esforço político para tanto.

De 2001 para cá, o FIT Rio Preto inscreveu no imaginário da cidade, da região e do país a ousadia de sempre programar um bocado de obras de pesquisa que provocam. O espectador mostrou-se aberto e instigado às rupturas de linguagens, à derrubada de fronteiras e convenções do fazer e do fruir o teatro, a dança, o circo, a performance, a intervenção e outras ramificações cênicas que por vezes surgem superpostas e contaminadas por outros campos da arte, como o cinema, o vídeo e as artes plásticas.

Para tanto, o espaço da cena era entranhado à topografia da cidade. O festival construía sua própria arquitetura, suspendia o tempo e o espaço normatizados para abrir-se desarmadamente à aventura dos criadores de todos os quadrantes.

Eis o golpe coronário mais sentido nesta edição que se vai: em plena vibração das manifestações populares de junho, quando o brasileiro redescobriu a ágora, o poder político da ocupação do espaço público, o FIT apequenou-se entre paredes – exceção às peças apresentadas em praças. Justamente o encontro que transgrediu em aberturas antológicas na Represa Municipal, institucionalizou-se nas compartimentagens municipais e privadas. Contradisse um dos intentos da própria curadoria de se aproximar da cidade, “se transformar de novo numa obra de toda coletividade rio-pretense”.

Prefeitura e Sesc SP, instâncias mãe e pai desse festival que se tornou referência no país e fora dele, foram inábeis para dobrar as barreiras draconianas da Justiça e dos órgãos de segurança que também vetaram o equipamento da Swift, uma fábrica construída na década de 1940 e desativada em 1970, com prédios de tijolos aparentes em terreno de fazer inveja a muitos centros culturais pelo desenho espacial e arborização natos – para não dizer do teatro recém-inaugurado. Tamanho desprezo das autoridades talvez reflita a desimportância da cultura nos corredores da política.

Durante uma das mesas de debate, intitulada “O festival e a cidade” e mediada por este jornalista, o secretário de Cultura, Alexandre Costa, e os representantes do Sesc Rio Preto, o gerente Sebastião Martins, e do Sesc SP, o cocurador Sérgio Luis de Oliveira, se dispuseram a dialogar com uma plateia de poucos artistas, ao lado de curadores do Janeiro de Grandes Espetáculos em Recife, Carla Valença, e do projeto de circulação Palco Giratório, Rafael Vianna, do Sesc Nacional no Rio de Janeiro.

Um segmento da categoria organizou manifestação na noite de abertura, em frente ao Teatro Municipal, com direito a apitaço, camisetas e placas em que se lia discordância elementar com a obstrução do espaço público e o desejo de “curar o FIT”. Alguns dos manifestantes integram espetáculos selecionados na programação. Não causaria mais ruído, por exemplo, se os artistas boicotassem em bloco sua participação? Faria mais sentido para argumentar sobre canais de participação e questionar políticas públicas?

Por falar em abertura, o cerimonial foi constrangedor. Como um certame que se propõe internacional e sofisticado em seu pensamento em arte, nos conformes de empreitadas desafiadoras que o Sesc SP já protagonizou, rende-se a chamar nomes de “autoridades presentes” ao microfone, por longos minutos, ao vexame de nem o deputado federal ou o vereador citados estarem presentes, mas sim representados? E o anúncio dos funcionários da entidade na capital? E a vaia para o presidente da Câmara de Vereadores? Enfim, uma atitude insensível e desrespeitosa para com os artistas do colombiano Mapa Teatro que aguardavam atrás da cortina para dar início ao espetáculo Discurso de un hombre decente. A brevidade é ouro nestas ocasiões, sem mais delongas.

Outro aspecto: o FIT deveria levar em conta sua maturidade para sair da curadoria eventual e adotar uma curadoria com atuação programática em escala bienal ou trienal. O modelo da volatilidade anual, um piscar de olho em se tratando de um festival de tamanha ambição e envergadura – orçado entre R$ 2,1 e R$ 2,5 milhões –, implica cada vez mais anacronismos.

As atrizes Ondina, Bete e Ligia sob Bob Wilson

A produção de dança e de teatro de Rio Preto não tem fôlego para emplacar dez obras a cada edição, como acontecia até recentemente. Quem sabe devido a problemas de formação e de fomento à produção. Por enquanto, a cultura de teatro da cidade não faz jus, esteticamente falando, ao tamanho e à natureza do FIT. A cota de cinco obras, como na edição finda, está de bom tamanho para acolher os trabalhos lapidares do período.

Não ouve deslizes na qualidade da programação. A ala internacional não gerou estranhamentos em suas formas. Mapa Teatro (Colômbia), Timbre 4 (Argentina), Fanny & Alexander (Itália) e Bob Wilson e seu elenco brasileiro soaram reconhecíveis em seus procedimentos. Quem mais surpreendeu foi o grupo chileno Teatro Kimen com um realismo-denúncia radical em Galvarino, a despeito da fixação na mensagem de sua causa nobre. Ou ainda a rua para crianças do português Radar 360, em Histórias suspensas, reinventando a fábula infantil com seu teatro gestual refinado e à mercê das múltiplas entradas e saídas de um armário cenográfico gigante plantado no meio da praça.

A seleção nacional não correu riscos, garantiu-se com destacadas produções da cena paulista, Estado por sinal hegemônico. Nos espetáculos de rua, prevaleceu a força da modalidade no sul, com grupos catarinense e gaúchos. O Ceará enviou um espetáculo para o palco e outro para a praça.

Ou seja, a curadoria de Oliveira, Antônio Januzelli, Cynthia Petnys, Luiz Fernando Ramos e Marcelo Bones respondeu a um dos seus eixos, a relativização do real e do ficcional sob a percepção do espectador. Mas esse protocolo de mediação não vazou para a urbe a contento. Paradoxalmente, no derradeiro dia do festival, a intervenção Abre alas, do Lume Teatro, grupo que ministrou oficina de cortejo e o apresentou com cerca de 40 participantes como resultado de uma semana de convivência, finalmente dialogou com a região central de Rio Preto de maneira simbólica, irônica, lúdica e crítica em sua diversidade de ações.

A fortuna pública do FIT está, de fato, na qualidade dos espectadores local e da região. Eles afluíram em filas da esperança (por causa dos ingressos esgotados) em todas as sessões que acompanhamos, sempre lotadas. É este legado inteligente da sua memória viva que o festival não pode desprezar. Por enquanto, nenhum secretário ou prefeito ou juiz ousariam cancelar uma edição do FIT. No dia que esboçarem qualquer gesto neste sentido, desconfiamos que a população vai pra rua, invade a Swifit, ocupa a Represa…

>> O jornalista viajou a convite da organização do FIT Rio Preto. Produziu textos para o catálogo e articulou parte das atividades formativas.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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