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Crítica

A miséria alegórica e protagonista

2.8.2013  |  por Clarissa Falbo

Foto de capa: Olga Wanderley/Cena Fotô

A rua – e a assistência formada pelos que nela transitam, trabalham ou residem – não poderia ser local mais propício para abrigar um espetáculo sobre a miséria. Em contraste, porém, com a carência real das calçadas e das vias, a miséria, a fome e a morte são representadas como alegorias em A pereira da tia miséria.

Tia Miséria é uma senhora pobre e triste cujas posses se resumem a uma pereira. Acompanhada por seu cão sem nome, a velha tenta proteger o patrimônio dos furtos famélicos constantemente realizados pela vizinhança enquanto espera a volta de seu filho Fome, que se extraviou mundo a fora. Quando a Morte, de unhas negras e foice empunhada, se aproxima, a tia a engana e a aprisiona. Miséria sobrevive, mas o custo de sua astúcia é que ninguém jamais morrerá.

As pernas-de-pau, ponto de partida para a pesquisa estética e estruturador da pulsão criativa do paranaense Núcleo Às de Paus, elevam e distanciam as personagens em realidade tão próximas e familiares ao universo das ruas. As estruturas se tornam prolongamento dos corpos, servem de muletas e dão vida a bonecos manipulados pelos atores.

Também promove o distanciamento a composição em versos da dramaturgia de Luan Valero, baseada em um conto popular espanhol. A musicalidade da palavra rimada foi sensivelmente refinada pelas canções executadas em cena. Destacam o tom poético do texto os belos arranjos de Eric D’Ávila, nos quais instrumentos percussivos somam-se às vozes afinadas da trupe – ainda que, vez por outra, não se alcance o volume ideal para o ar livre. A direção da obra é assinada pelo grupo.

Ator do Núcleo Às de Paus em apresentação no Recife

Nada como subverter o tempo frenético e a atmosfera da rua inundando-a com a dramaticidade e a cadência de uma narrativa mais complexa. Há versos cantados que soam como mantras e cumprem mesmo o papel do comentário brechtiano:

O que é desprezível

Não se deve desprezar.

O que é invisível

É preciso enxergar.

Digo de antemão

Esta é a canção

Do universo em expansão.

O Ás de Paus, oriundo das salas de ensaio da Escola Municipal de Teatro de Londrina e representante da novíssima safra paranaense, parece herdar a medida da mistura entre erudito e popular tão cara ao Grupo Galpão (MG) e aos Clowns de Shakespeare (RN). A pereira da tia miséria (2010), seu primeiro espetáculo, foi agraciado com o Troféu Gralha Azul, importante premiação da cena teatral no Paraná, e participa em 2013 do Festival Palco Giratório, promovido pelo Sesc nacional, sendo levado a cidades de todo o país.

Natural de Recife. Graduou-se em jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e direito pela UFPE. Trabalhou no jornal Folha de S.Paulo (2010-2012), onde atuou como repórter de teatro e dança da revista sãopaulo. Foi setorista de teatro da revista Continente. Escreveu reportagens e críticas para o jornal Ponte Giratória, publicação editada durante o Festival Palco Giratório, realizado pelo Sesc Pernambuco. Tem a sorte de ser míope. Por isso, quando criança, era acomodada nos degraus do palco para ver os espetáculos. Assim, sempre chegava bem cedo, podia prestar atenção no antes e em tudo e descobriu-se, ou tornou-se, aficionada. Segue míope, não pode mais ocupar os degraus, mas senta nas primeiras filas. Até hoje, não sabe descrever a beleza do cheiro dos holofotes.

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