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Reportagem

Naum Alves de Souza volta a dirigir texto de sua autoria

6.8.2013  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Paulo Cesar Lima

Naum Alves de Souza nunca deixou de escrever. Ao longo dos últimos anos, o consagrado autor de Aurora da minha vida também continuou a atuar como diretor, conduzindo espetáculos de dramaturgos clássicos e contemporâneos. Com Operação trem-bala, porém, ele volta a fazer algo que as plateias não puderam presenciar nos últimos 15 anos: encena um texto de sua autoria.

A partir de um conto inédito – Almoço de ação de graças -, Naum criou o argumento da peça, em cartaz no Instituto Capobianco. Em foco, estão as agruras de um casal de velhos.   Marido e mulher já estão senis. A família, então, faz planos de livrar-se deles e apressar a divisão de bens. “É o que acontece com a maioria das pessoas hoje”, afirma o diretor.  “Conforme vão envelhecendo, começam a perder espaço.   São desalojados, a casa é vendida, vão morar em apartamentos pequenos, perdem as suas coisas.  Até chegar a um ponto, quando os sintomas de Alzheimer aparecem, em que as famílias não sabem mais cuidar dessas pessoas dentro de casa.”

O tema escolhido pelo escritor parece estar na ordem do dia, reforçado pela longevidade da população e o esgarçamento da estrutura familiar.   Mas não é a primeira vez que esse momento cruel da vida – o envelhecimento e seu desamparo consequente – desponta em sua obra.   Lançada em 1979, No Natal a gente vem te buscar contava a história de uma mulher que toma um trem acreditando ter como destino a casa de uma irmã, mas é conduzida a um asilo. Desse ponto em diante, a estrutura em flash-back revela o interior dessa família.   Seus vícios, sua moral, sua vontade de, enfim, desvencilhar-se da protagonista, uma solteirona desinteressante. “Ela é chata, sempre foi. É boba, inconveniente. É a chance de mandá-la embora.  Fiz de um jeito que incomodasse mesmo”, conta ele, que conquistou os prêmios Molière de direção e autoria pelo espetáculo.

Uma diferença essencial da nova criação em relação às anteriores é o contexto social das personagens. A classe média deixa de ser o lugar de onde se fala.

Operação trem-bala vem tratar de figuras endinheiradas, gente que está no poder desde sempre, perpetuando-se. A queda, neste caso, é de mais alto.  E, talvez por isso, soe ainda mais aguda.

Na atual trama, Sua Excelência, um velho governante, e sua primeira mulher, Bluma, são enganados por suas filhas. Preparam-se para embarcar de bom grado em um trem-bala sem saber que este os levará para um forçado exílio.   “As pessoas não pensam na velhice, gente que trabalha a vida inteira para acumular coisas, para deixar bens para os filhos.   Não se pensa em mortalidade, mas em imortalidade”, observa o encenador, que completa 70 anos e comemora 40 de carreira.  “Os velhos tornam-se estorvos.   E ninguém imagina que um dia também será esse estorvo para alguém.”

Há escritores que escrevem sempre o mesmo livro.  Como se cada novo título não fosse mais do que um desdobramentos do anterior.  Como se estivessem diante de uma pergunta inesgotável, que leva a vida inteira para ser respondida. Naum Alves de Souza escolheu a memória como território de sua ficção.

Na trilogia de peças que o notabilizou – No Natal a gente vem te buscar (1979), Aurora da minha vida (1981), Um beijo, um abraço, um aperto de mão (1984) -, o dramaturgo cercou-se de um mundo que conhece bem. Teceu recordações infantis, recorreu às angústias da adolescência, aos fantasmas da formação presbiteriana, aos estigmas de sua classe e de sua época.  Deu forma a modos de pensar e de agir que lhe são inerentes.  Mas que não se encerram nele. Estavam nos que vieram antes, espraiam-se entre os que surgiram depois.

“Minhas peças tentam abordar minhas impressões a respeito de um mundo que conheço muito bem.  Não estou fora.  Estou falando de dentro”, diz o autor.  “Estou sempre em busca de uma explicação, tentando entender por que sou desse jeito.  Quais os elementos morais, sociais, religiosos que nos formam. Já passei por cinco terapias – e elas me ajudaram muito – mas não me modificaram.”

Ao debruçar-se sobre uma classe social que não a sua, Operação Trem-Bala desvencilha-se do sabor amargo que impregnava outras obras. Só que sem perder a mirada crítica. “Eu só queria falar sobre a velhice. Mostrar que até os poderosos ficam senis e acabam do mesmo jeito que os outros”, conta.

Naum Alves de Souza atirou no que viu e acertou em algo que nunca antes tinha entrado em sua arte: a política. Já havia dirigido criações em que o aspecto surgia acentuado –

A Flor do meu querer, de Juca de Oliveira, o monólogo Mediano, de Otávio Martins.  Agora observa por si só o universo intricado. Uma mudança que lhe rendeu novidades estilísticas também.

Em suas peças, os personagens invariavelmente pareciam lembrar alguém, como se um parente que conhecemos muito bem surgisse com outro nome e em outro lugar.  No espetáculo que ele encena desta vez, as figuras perdem o tom prosaico para ganhar a estatura de alegorias. Homens e mulheres adquirem traços exagerados. Têm mais de cem anos.  Estão envolvidos em situações impossíveis, rodeados por fantasmas. Existe, inegavelmente, um traço de absurdo que perpassa tudo.  “Nada é realista, ainda que tudo seja realidade”, comenta o criador.

Tal realidade diz respeito a um retrato bastante fiel da classe política. Ao longo de toda a trama, não faltam menções a situações que o espectador poderá facilmente identificar.  Observam-se práticas clientelistas, corrupção, famílias que se perpetuam no poder.  “O Brasil está cheio desses políticos que vão fazendo seus sucessores entre filhos, entre netos”, observa.

Política nem sempre diz respeito apenas a situações públicas.  Dentro dos limites de seu palacete, o protagonista construiu um ambiente tão degradado quanto o que o circundava nos postos governamentais que ocupou.  Os filhos são criados pelos empregados, sem limites entre o certo e o errado, acobertados em seus erros e desmandos.  Não surpreende que, ao fim, só estejam interessados em receber a parte que lhes cabe no bolo.

A contrastar com o exagero que imprimiu às interpretações, o diretor optou por uma encenação limpa, com a cenografia reduzida a um pequeno trem de brinquedo. O elenco, formado por Ana Andreatta, Fábio Espósito, Marco Antônio Pâmio e Mila Ribeiro, reveza-se para fazer vários personagens, recorrendo apenas a trocas de figurino e maquiagem. A luz de Wagner Freire ajuda a criar climas, delinear os claros e escuros de cada um desses seres.  E fica a sensação de que o jogo que mobiliza o teatro de Naum Alves de Souza está exposto.

A limpeza da cena chama atenção justamente pelos múltiplos talentos do criador.  Além de diretor e autor, Naum tem carreira profícua como cenógrafo, trabalhou nesta função para Elis Regina, Luís Sérgio Person e João Bethencourt.  Mereceu seis prêmios pelo projeto cenográfico inspirado que concebeu para Macunaíma, encenação de Antunes Filho (1978).

 40 anos esta noite

São quatro décadas de uma carreira que atravessa o teatro, a televisão e a ópera.  Naum conta que, ao criar um texto, sempre estabelece uma relação muito próxima com o que vai ao palco. “Às vezes, a gente tem um certo ciúme, autor teatral sempre tem medo de que destruam as suas peças”, comenta. “Dirigi Aurora da Minha Vida quatro vezes. Não devia ter feito tanto. Era melhor deixar para outros.”

A direção de uma obra que não seja sua carrega necessariamente outra sensação. Mas que pode ser igualmente feliz em alguns títulos.  Sua versão para Longa jornada de um dia noite adentro (2003) foi um desses momentos.  “Esse texto era uma velha paixão”, conta.  Trazia Sergio Britto, Marco Antônio Pâmio, Genézio de Barros e Cleyde Yáconis, em um de seus muitos momentos de brilho.  “A personagem Mary Tirone tinha uns 50 anos.  Cleyde já estava com 80.  E fazia lindamente. Aquela mulher interiormente quebrada, os filhos bêbados, o casamento no fim.  Ela tinha um mistério que eu não sei definir. O teatro era a Cleyde.”

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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