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Crítica

O teatro melancólico de Daniel Veronese

9.9.2013  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Sisso Chouela

O teatro é feito da falta e sua correspondente melancolia. É o que costuma dizer o diretor argentino Daniel Veronese, como na entrevista ao site Alternativa Teatral em 2005. Talvez seja por conta dessa concepção que dois dos seus espetáculos atualmente em cartaz em Buenos Aires falem de perdas irreparáveis, ausências que a vida não dará conta de preencher.

Em Sonata de otoño, Veronese leva para o palco do Teatro Picadeiro (mais informações aqui) sua adaptação do filme homônimo de Ingmar Bergman. Cristina Banegas e María Onetto vivem mãe e filha que se reencontram depois de sete anos longe uma da outra. Charlotte, a mãe, é uma pianista mundialmente famosa que sempre privilegiou o trabalho, em detrimento de sua vida familiar. Eva, a filha, desistiu da carreira de pianista para se tornar uma dedicada dona-de-casa. Enquanto a mãe vive em turnês pelas capitais europeias, ela dedica-se à igreja e aos cuidados de uma filha cadeirante e com problemas mentais (Natacha Cordova).

A casa de Eva é simples, muito diferente dos hotéis de luxo por onde circula Charlotte. A pianista incomoda-se com a presença da neta, deixa explícito que preferiria que a menina estivesse em um sanatório. Mesmo assim, faz demonstrações de carinho pela menina, penteando seu cabelo e lendo estórias.

Longe de ser um reencontro caloroso, o rancor de Eva desencadeia uma violenta discussão entre mãe e filha. Eva pede para a mãe avaliar seu desempenho enquanto executa uma sonata de Schubert. Charlotte hesita, mas diante a insistência da filha responde que tecnicamente estava perfeito, mas faltava vida e emoção. Ressentida, Eva culpa Charlotte pela constante melancolia que carrega, a falta da presença da mãe enquanto crescia.

O jogo entre Cristina Banegas e María Onetto é equilibrado. Mãe e filha estão em igualdade de condições. São duas mulheres autossuficientes, emancipadas, mas com maneiras opostos de se posicionarem diante da vida. Esse contraste foi traduzido nos figurinos de maneira incomodamente óbvia: um sofisticado vestido vermelho com pedras brilhantes para Charlotte, um apagado conjunto verde de saia e blusa para Eva. São roupas que condenam as personagens aos estereótipos sem levar em conta suas nuances e contradições.

Banegas, Onetto e Ziembrowski em Sonata de otoño

A outra obra em temporada dirigida por Veronese guarda semelhanças com Sonata de otoño. Em Los elegidos, no Teatro Paseo La Plaza (mais informações aqui), Jorge Marrale e Benjamin Vicuña vivem uma conflituosa relação professor/aluno. Victor (Marrale) é um escritor aclamado que aumenta seus ganhos dando aulas sobre como escrever literatura.

Em um desses grupos está Martín (Vicuña), aspirante a escritor que tem medo de mostrar seu trabalho. Os métodos de Victor são pouco ortodoxos e Benjamin chega a considerá-lo um picareta. Inicia-se então um diálogo de emoções fortes, como o de Charlotte e Eva em Sonata de otoño. Martín ressente-se com Victor, pois vê nele o mestre que lhe falta, mas, ao mesmo tempo, recusa-se a ensinar.

Eva e Benjamin são personagens melancólicos, que sentem falta do que não viveram, do que a vida se negou a lhes ofertar. Para ambos, Veronese exerceu uma direção controlada, sem vitimizá-los. Ao contrário, deu contorno à angústia de cada um, eliminando qualquer vestígio melodramático.

Cabem ainda duas observações marginais quanto às montagens aqui observadas do encenador de quem o público brasileiro assistiu há pouco adaptações contundentes de Tchékhov e teve suas peças produzidas pelo grupo mineiro Espanca! (O líquido tátil, com direção do próprio) e pela paranaense CiaSenhas (Circo negro, por Sueli Araujo).

Há uma cena de nudez em Los elegidos que causou comoção em Buenos Aires. A atriz Manuela Pal, conhecida por seus trabalhos na televisão, levanta a blusa e expõe os seios. A cena é rápida e coerente com sua personagem, uma aspirante a celebridade que tenta seduzir o professor. No Brasil, sua “nudez” teria passado despercebida. Seu colega de cena, Benjamin Vicuña, que no momento protagoniza a telenovela Farsantes (Canal 13) também tira a camisa e arranca gritinhos da plateia.

O Teatro Picadero é histórico e só por isso merece a visita. Localizado na Pasaje Disciépolo, foi palco do Teatro Abierto, movimento teatral de resistência à ditadura militar (1966-1973). Reformado, abriga duas hoje duas salas e um charmoso restaurante.

Ficha técnica – Sonata de otoño

Autor: Ingmar Bergman

Adaptação e direção: Daniel Veronese

Com: Cristina Banegas, María Onetto, Luis Ziembrowski e Natacha Cordova

Assistente de direção e stage manager: Gonzalo Martinez

Desenho de cenografia: Diego Siliano

Desenho de luz: Marcelo Cuervo

Desenho de figurino: Laura Singh

Ficha técnica – Los elegidos

Autora: Therese Rebeck

Adaptação: Fernando Masllorens e Federico Gonzalezd del Pino

Com: Jorge Marrale, Benjamin Vicuña, Vicky Almeida, Manuela Pal e Lautaro Delgado

Direção: Daniel Veronese

Desenho de cenografia: Alberto Negrin

Desenho de luz: Eli Sirlin

Desenho de figurino: Laura Singh

Diretor assistente: Franco Battista

Supervisão de som: Pablo Abal

Diretor técnico: Jorge Perez

Produtor geral: Pablo Kompel

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Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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