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Reportagem

Ói Nóis faz releitura moderna de tragédia

19.9.2013  |  por Fábio Prikladnicki

Foto de capa: Pedro Isaias

Vamos conversar na Cólquida  convida Tânia Farias, enquanto conduz o repórter pela Terreira da Tribo, no bairro Floresta, em Porto Alegre, onde estreia, nesta quarta-feira (11/9), Medeia vozes, a aguardada nova peça do Ói Nóis Aqui Traveiz, um dos destaques do 20º Porto Alegre Em Cena.

Representação da região onde atualmente fica a Geórgia, entre a Europa e a Ásia, a Cólquida do Ói Nóis é um espaço com piso coberto por areia, um dos locais onde se passa a trama. É nesse cenário que se junta a nós Paulo Flores, um dos fundadores do grupo, há 35 anos. Nessa trajetória, o coletivo se tornou um dos mais importantes do país.

Flores e Tânia – que ingressou há 18 anos – explicam que Medeia vozes é resultado de dois anos de pesquisa. É o primeiro espetáculo que estreia na atual sede do Ói Nóis, na Rua Santos Dumont, onde estão desde 2009 (sem contar trabalhos da escola de atuação coordenada pelo grupo). Enquadra-se no que eles chamam de teatro de vivência, formato visto pela última vez em Viúvas – Performance sobre a ausência (2011), alegoria das ditaduras da América Latina encenada na Ilha das Pedras Brancas (ou Ilha do Presídio), no Guaíba. Trata-se de um tipo de espetáculo que dispensa palco: os espectadores caminham por diferentes ambientes, onde se passam as cenas, compartilhando os espaços com os atuadores – outra expressão característica do grupo, que designa atores com compromisso social.

A reportagem experimentou vivenciar Medeia vozes em um ensaio aberto. Durante três horas e vinte minutos, sem intervalo, o público percorre corredores, sobe e desce escadas e se maravilha com os cenários especialmente preparados. Pisa em chão de concreto, de cascas de coco e de areia. Até o olfato entra na história – cada ambiente tem uma fragrância. Tudo isso é fruto do trabalho de 17 atuadores, dois iluminadores e um contrarregra. Não há o papel de um diretor: a produção é assinada coletivamente. De certo modo, é uma experiência lúdica, mas é impossível confundir isso com entretenimento. O teatro, para eles, é um meio de transformação social.

“A base do nosso trabalho é essa”, explica Flores, intérprete do antagonista Acamante. “Que o teatro tenha uma força, que a pessoa saia mobilizada para a ação, que ela queira que o mundo seja diferente.”

O atuador Paulo Flores, cofundador há 35 anos

Medeia vozes é baseada no romance de mesmo nome publicado em 1996 pela escritora alemã Christa Wolf, autora do livro que havia inspirado outra produção do Ói Nóis, a épica Aos que virão depois de nós — Kassandra in process (2002). Aqui, a autora reescreve o mito de Medeia, que serviu a diversos autores. A versão mais conhecida é a de Eurípides, tragediógrafo grego tido como o mais atento aos menos favorecidos e às mulheres. A Medeia de Eurípides, no entanto, é uma homenagem curiosa, já que a personagem, em sua desventurada jornada da Cólquida a Corinto, mata o irmão, a mulher do ex-marido, o pai dela e, como se não fosse o suficiente, os próprios filhos.

A personagem de Christa Wolf não pratica qualquer desses assassinatos. Os governantes que ela desafia é que tentam marginalizá-la, acusando-a de crimes que eles mesmos cometeram para preservar o poder. No lugar da feiticeira bárbara e traiçoeira, surge uma mulher esclarecida que luta por uma sociedade justa.

Com a ideia de sublinhar a atualidade de Medeia, o Ói Nóis representa, entre as cenas, depoimentos de mulheres ativistas dos tempos modernos. São elas a somali Waris Dirie, a boliviana Domitila Chungara, a indiana Phoolan Devi, a alemã Ulrike Meinhof e a polonesa-alemã Rosa Luxemburgo. A trilha sonora conta com canções em armênio, grego, árabe e francês.

“O que o teatro tem de indispensável e insubstituível é a possibilidade do encontro”, argumenta Tânia, que viverá o papel de Medeia. “Estamos no tempo das comunidades virtuais, mas não existe nada mais potente do que estar em frente ao outro.”

Ali nas areias da Cólquida da Terreira da Tribo, essa parece uma verdade comprovada.

>> Texto publicado originalmente no jornal Zero Hora, Segundo Caderno, em 10/9/2013.

>> Leia a crítica ‘O tempo de Medeia é hoje’.

Ficha técnica

Criação coletiva: Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, inspirada livremente no romance homônimo de Christa Wolf

Roteiro, encenação, cenografia, figurinos e iluminação: Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz

Atuadores: Tânia Farias, Paulo Flores, Clélio Cardoso, Marta Haas, Eugênio Barboza, Jorge Gil, Sandra Steil, Paula Carvalho, Roberto Corbo, Letícia Virtuoso, Mayura Matos, Luana da Rocha, Keter Atácia, Alex Pantera, Geison Burgedurf, Pascal Berten e Pedro Gabriel

Música original: Johann Alex de Souza

Preparação vocal: Leonor Melo

Operação de luz e de som: Daniel Steil e Márcio Leandro

Jornalista e doutor em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É setorista de artes cênicas do jornal Zero Hora, em Porto Alegre (RS). Foi coordenador do curso de extensão em Crítica Cultural da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São Leopoldo (RS). Já participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival Porto Alegre Em Cena. Em 2011, foi crítico convidado no Festival Recife de Teatro Nacional.

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