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Crítica

Ambiguidade do desejo é tônica de ‘Eros impuro’

28.10.2013  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Claudia Ferrari

O público desce a escada do Teatro Pequeno Ato, antigo Ivo 60, na região central de São Paulo, e Andrei (Jones de Abreu) recebe as pessoas como se fossem seus convidados. Nessa cena inicial da peça Eros impuro, de Sérgio Maggio, ele é um artista plástico esperando um garoto de programa que será modelo para sua pintura. No caso, a própria plateia faz as vezes de objeto a ser retratado. Esse procedimento lembra outros, de artistas que colocaram o espectador como parte da obra. É o caso do espanhol Diego Velázquez com o quadros Las meninas (1656),  do holandês Rembrant com O sindicato dos alfaiates (1662) ou do francês Claude Manet em Um bar no folies-Bergère (1882).

O ator Jones de Abreu é também um pintor fora dos palcos. Ele pinta, de fato, um quadro a cada apresentação de Eros impuro. Uma hora ou outra, dá para perceber que ele levou para a tela  a pose de um espectador, os óculos de outro, a cor da pele de um terceiro. Esse embaralhamento entre o real e a representação é a tônica do espetáculo que trata, de maneira poética, a ambiguidade entre a revolta e o desejo em quem foi vítima de abuso sexual.

A princípio, lembra a peça Como eu aprendi a dirigir um carro, da dramaturga americana Paula Vogel, montada no Brasil por Felipe Hirsch em 2004, com a Sutil Companhia. Em ambas as obras, há uma ambivalência na qual se equilibram os protagonistas: a violência é sentida e condenada, mas desperta um desejo difuso, incômodo, tanto para a personagem quanto para quem assiste. Em Eros impuro, Andrei chega a dizer duas vezes que era tomado pelo desejo enquanto corria fugindo do agressor.

A semelhança entre esses dois textos, no entanto, terminam aí. Paula Vogel retrata a violência oculta no universo asséptico dos lares de classe média. Sérgio Maggio, também diretor, cai no submundo gay, das saunas e da prostituição. Nesse sentido, Andrei se insere em uma linhagem de personagens homossexuais amantes das artes que flertam com a marginalidade. Basta lembrarmos do decorador Candy Delaney, da peça E contar tristes histórias das mortes das bonecas, de Tennessee Williams; ou do modista Ivo, de Santidade, de José Vicente.

Solo brasiliense de Abreu para texto de Maggio

Ganhador do Prêmio Myriam Muniz, Eros Impuro é um trabalho da Criaturas Alaranjadas Cia. de Teatro. A estreia foi em 2011, em Brasília. Com patrocínio do Fundo de Apoio à Cultura do GDF para Itinerância, o espetáculo já esteve em festivais em Vitória, Goiânia e Recife e viajou para Salvador, Belo Horizonte, Curitiba, Belém e João Pessoa. Depois de São Paulo, vai em 2014 para Fortaleza, São Luis e Porto Alegre.

Segundo o material de divulgação, Eros impuro foi concebida a partir do contato de Maggio com a obra plástica de Jones de Abreu e de uma pesquisa anterior feita pelo autor com oito cafetinas que resultou no livro Conversas de cafetinas e na peça Cabaret das donzelas inocentes, ambos em 2009. Como parte do material dizia respeito à violência sexual contra crianças, o dramaturgo acabou por incorporar suas investigações no novo texto.

Ao longo do espetáculo, ficamos sabendo de relacionamentos familiares que Andrei afirma serem “Nelson Rodrigues na vida real”. A referência ao dramaturgo não é apenas retórica. Assim como as peças e as crônicas de Nelson Rodrigues retiravam o véu de moralidade que encobria o campo sexual, o texto de Maggio expõe a realidade dos pais de família que, anonimamente, frequentam os pontos de encontro gays para relacionamentos fortuitos e sexo casual.

O desenho de luz, nesse caso, tem uma função importante em Eros impuro, a de marcar diferentes personagens interpretados por Jones de Abreu. Outra relação com Nelson Rodrigues é a divisão do texto em três planos distintos – a consciência, a memória e o delírio, semelhante à estrutura da peça Vestido de noiva.

A atuação carismática de Jones de Abreu cria empatia com o público, mesmo tratando de questões polêmicas. Referências a Arthur Bispo do Rosário e Antonin Artaud abrem a obra para discussões sobre arte e loucura. Outra questão presente em Eros impuro é o debate sobre os limites entre arte erótica e pornografia. Em certo momento, vídeos caseiros com pessoas tendo relações sexuais são projetos. Andrei reclama da falta de reconhecimento que tem como artista pelo fato de usar prostitutos como modelo. A história da violência sexual, porém, possui uma força centrípeta que faz com que essas discussões estéticas não ganhem destaque no espetáculo.

Teatro Pequeno Ato (r. Teodoro Baima, 78, São Paulo, tel. 11 9 9642-8350). Qua. a sáb., às 21h; dom., às 19h. R$ 20 (na qua., grátis). Até 10/11.

Ficha técnica

Texto e direção: Sérgio Maggio

Com: Jones de Abreu

Produção executiva: Claudia Charmillot

Realização: Criaturas Alaranjadas Cia. de Teatro

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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