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Crítica

Antunes Filho subverte o “american way of life”

24.10.2013  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Emidio Luisi

Grover’s Corners não existe, mas está bem ali perto de você. A cidade fictícia criada por Thornton Wilder é a representação imaginária de um paraíso onde a lua encanta, os filhos obedecem aos pais e os vizinhos se preocupam genuinamente uns com os outros. É a mesma imagem das famílias felizes dos anúncios publicitários e das revistas de celebridades. Os problemas, quando surgem, são facilmente resolvidos. O organista da igreja é alcoólatra, mas tudo bem, as pessoas entendem. “Sabemos as dificuldades por que passou”, diz a esposa do médico da cidade, “a única coisa que nos cabe é fazer de conta que não notamos”.

Os dias passam, as crianças crescem, os ciclos se sucedem. É esse clima quase utópico que predomina em Nossa cidade, de Thornton Wilde, em cartaz no Sesc Consolação até 8/12, sob a direção de Antunes Filho. Escrita em 1938, a peça é uma das principais obras do autor norte-americano e já foi muitas vezes encenada no Brasil. Ziembinski a dirigiu em 1949, no curto período que trabalhou no Teatro de Amadores de Pernambuco. Em 1976, foi uma das obras publicadas na coleção Teatro vivo, da Editora Abril, dirigida por Sábato Magaldi. Em São Paulo, foi montada pelo Grupo Tapa, no final dos anos 1980, quando a companhia dirigida por Eduardo Tolentino dedicou-se a clássicos como A mandrágora, de Maquiavel, e Sr. de Porqueiral, de Molière.

Não é um texto fácil, pois quebra com estruturas clássicas tanto do drama burguês quanto do teatro épico. Ou seja, frustra o espectador pela ausência de conflitos ou de crítica social. Não provoca nem identificação, nem distanciamento. Assiste-se ao passar do tempo em uma cidade nada interessante.

Apesar de fictícia, Wilder localiza Grover’s Corners no estado americano de New Hampshire, na divisa com Massachusetts. É pequena e com perfil de classe média. Lá moram os Gibbs e os Webb, ambas famílias com um casal de filhos. A peça começa na hora do café da manhã, com as senhoras Gibbs e Webb apressando os filhos para não chegarem atrasados nas escolas. O Dr. Gibbs é médico e acaba de voltar de um parto de gêmeos nos arrabaldes da cidade.

Ao longo do primeiro ato, desfilam-se cenas prosaicas e pequenas conversas. As donas de casa falam de vagens em conserva e resfriados. Os adolescentes, da escola e de esportes. Nada sucede de dramático ou trágico. Não se trata, porém, de naturalismo. Ao contrário, a presença de um personagem, o Diretor de Cena, corta, às vezes secamente, qualquer ilusão catártica. Mais que um narrador, o Diretor de Cena alimenta o espectador de informações aparentemente extra-cênicas e coloca ênfase em determinados elementos da peça. O próprio autor já fez esse papel, que também já pertenceu a Henry Fonda e a Ziembinski. Na montagem de Antunes Filho, ele é um cadeirante interpretado por Leonardo Ventura, possível alusão a veteranos de guerra.

O viés antinaturalista é evidente, também, mas indicações de Wilder sobre a cenografia: “Nenhuma cortina. Nenhum cenário. Os espectadores, ao chegar, veem o palco vazio, à meia-luz” (Nossa cidade, coleção Teatro vivo, Editora Abril, 1976, p. 9).  Muitos críticos, como Peter Bradshaw, do jornal inglês The Guardian (crítica aqui), e  John Rockwell, do New York Times (crítica aqui) indicam associações entre Nossa cidade e o filme Dogville (2003), do cineasta dinamarquês Lars von Trier, que também apresenta um cenário vazio. Ainda que seja possível de fato pensar em afinidades formais, as intenções das duas obras são opostas: encantamento pelo mundo e valorização do cotidiano em Wilder, crítica social e apologia ao ódio em Trier.

O segundo ato foi totalmente eliminado por Antunes Filho. No texto original, narra o casamento de Emily Webb (Sheila Faermann) com George Gibbs (Lucas Rodrigues). Retirá-lo não fez falta, pois, novamente, nada de excepcional acontece e ficamos sabendo das bodas no terceiro ato, que vale-se de um expediente sobrenatural para evidenciar as intenções do autor.

Uma das famílias do clássico escrito em 1938

Nacionalista extremado, Wilder defende com Nossa cidade a necessidade de valorizar os acontecimentos corriqueiros, o dia a dia, enxergar beleza na rotina. “Pode alguma criatura humana compreender a vida, enquanto ela vive?”, pergunta Emily. “Não”, responde o Diretor de Cena, “os santos e os poetas, talvez, um pouco”. Wilder erige-se, assim, como santo e poeta, a mostrar que não podemos perder tempo deixando de apreciar a beleza dos pequenos acontecimentos.

Não por acaso, é esse também o tom dos livros de autoajuda, dos conselhos dos gurus do bem-estar nos programas vespertinos de televisão e das frases motivacionais difundidas no Facebook. Grover’s Corners é a imagem de comunidade asséptica vendida pelos corretores de imóveis de condomínios privados. Mas, de largada, é de se duvidar que essa ideia tenha sido comprada por Antunes Filho. Não foi.

Ao contrário, o diretor inclui cenas e elementos que subvertem radicalmente o texto de Wilder. Critica o american way of life, a idiotização daqueles que pensam em viver a vida sem dialética, sem a angústia e a falta que nos constitui como sujeitos. Antunes insere pequenas cenas, inexistentes no texto original, mas coesas com a narrativa, que criam o contraponto ideal para que a apologia de Wilder ao “american way of life” torne-se  imagem da alienação e do fascismo das boas intenções.

Além de Nossa cidade, o público brasileiro teve contato recentemente com outra obra de Wilder. O musical Alô, Dolly (aqui montado por Miguel Falabella e protagonizado por Marília Pêra) teve o texto de seu livreto retirado da peça The matchmaker, escrita por Wilder entre 1954 e 1955.

Ficha técnica

Texto: Thornton Wilder

Reconstrução: Antunes Filho

Elenco: Amanda Mantovani, Antonio de Campos, Carlos Sério, Diego Melo, Ediana Souza, Fagundes Emanuel, Felipe Hofstatter, Gui Martelli, Leonardo Ventura, Lucas Rodrigues, Luiz Gustavo Lopes, Luiza Lemmertz, Mateus Carrieri, Naiene Sanchez, Nelson Alexander e Sheila Faermann

Diretor de palco: Felipe Hofstatter

Assistentes de direção: Felipe Hofstatter e Carolina Erschfeld

Diretor de arte: Hideki Matsuka

Figurinos e adereços: Camila Nuñez

Assistentes: Tainara Dutra e Carolina Franco

Costureira: Noeme Costa

Cenografia e adereços: Sandra Pestana

Assistente: Mariana Mattar

Painéis cenográficos: Luiz Gustavo Lopes

Painéis de cena: Érico Peretta

Cenotécnico: Cesar Rezende

Pesquisa de textos e imagens do programa: Thiago Brito

Trilha sonora: Raul Teixeira

Assistente e operação de som: Lenon de Almeida

Iluminação: Edson FM e Elton Ramos

Assistentes: Fábio Albino e Marcio Martins

Preparação de corpo e voz: Antunes Filho

Professora de canto: Solange Assumpção

Produção executiva: Emerson Danesi

Fotos: Emidio Luisi

Assessoria de imprensa: Ofício das Letras – Adriana Monteiro

Secretaria do CPT: Ligia Alves de Lima

Direção geral: Antunes Filho

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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