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Crítica

Atrizes equilibram a dor do outro em obra catalã

22.10.2013  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Christina Carvalho

A história do teatro brasileiro é repleta de parcerias artístico-amorosas que impulsionaram a modernização das linguagens, a experimentação estética e a profissionalização das atividades cênicas: Cacilda Becker e Walmor Chagas, Maria Della Costa e Sandro Polônio, Sérgio Cardoso e Nydia Licia, Nicette Bruno e Paulo Goulart. Não por acaso, o casamento entre Paulo Autran e Karin Rodrigues foi lembrado por André Acioli, gerente do Teatro Eva Herz, em São Paulo, na estreia da peça Duas mulheres que dançam.

Escrita pelo dramaturgo catalão Josep Maria Benet i Jornet, Duas mulheres que dançam é um texto desconcertante. Ainda que seja engraçado a maior parte do tempo, não é uma comédia. Ao contrário, trata pesadamente da vida de duas mulheres solitárias. Elas não têm nome. Uma (Karin Rodrigues) é idosa, foi militante feminista na juventude e guarda uma coleção de gibis da qual falta um número para ficar completa. A outra (Amazyles de Almeida) é uma jovem professora de línguas e literatura, mas foi trabalhar como acompanhante da idosa.

Esta vive em um apartamento com móveis velhos e um ameaçador buraco no chão da sala. Irônica e bem-humorada, esconde a solidão de ter sido abandonada pelos filhos e de sentir a decadência física dia após dia. A jovem, por sua vez, teve uma experiência familiar trágica que a afastou do emprego e dos amigos. É a solidão que permite o diálogo entre as duas, uma reconhecida no sofrimento da outra. Deixar faltando um número na coleção de gibis é uma forma de manter-se viva enquanto nas prateleiras os remédios se acumulam.

Nos pés da idosa, pantufas em formato de cachorrinhos. Esse toque infantil no figurino criado por Maira Ramos remete à leveza de quem deu sentido à vida, ainda que saiba que ela é feita de vazios e imprevistos. A mesma senhora que calça pantufas permite-se dizer palavrões aqui e ali. A trama, com toques de melodrama, poderia levar a um final piegas e banal, mas, ao contrário, é surpreendente e coerente com as trajetórias das personagens.

Karin e Amazyles em cena da obra desoncertante

O espetáculo é pontuado por trilhas sonoras de filmes, num leque que vai de Cantando na chuva, com Gene Kelly; passando pelas composições de Nino Rota para o Amarcord, de Federico Fellini, e até Bete balanço, filme de Lael Rodrigues, com a música-título do Barão Vermelho.

Karin Rodrigues foi casada com Paulo Autran por 33 anos. Os dois trabalharam juntos em peças como Pato com laranja, Dr. knock, O homem elefante, Rei lear, Vestir o pai e O avarento, último trabalho do ator, em 2007. Após a morte do marido, Karin voltou aos palcos em 2009, com a peça Mãe é karma, escrita e dirigida por Elias Andreato. Em 2011, foi dirigida por Leonardo Medeiros em A senhora de Dubuque, de Edward Albee.

Mesmo para o espectador menos familiarizado com teatro, será possível perceber aproximações entre os estilos de interpretação de Karin e Autran: a dicção perfeita, os passos bem coreografados, os gestos com a mão pontuando as falas. As cores de um se misturaram com a do outro de maneira indelével.

Nascido em 1940, Benet i Jornet é considerado um dos dramaturgos catalães mais importantes hoje, com uma produção constante desde a década de 1960. Duas mulheres que dançam foi traduzido por Clarisse Abujamra. A direção é de José Sebastião Maria de Souza, que já trabalhou com Antônio Abujamra, ator e diretor responsável por indicar a obra catalã a Karin.

Chama a atenção a ausência de patrocinadores e a exígua ficha técnica, o que prova que é possível fazer bom teatro com poucos recursos.

Ficha técnica

Direção geral: José Sebastião Maria de Souza

Direção de arte, cenários e figurinos: Maira Ramos

Programação visual: Sydney Michellete

Fotos: Christiana Carvalho

Elenco: Karin Rodrigues, Amazyles de Almeida

Artes gráficas: Maurício Tramonti

Assessoria de imprensa: Fernanda Teixeira

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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