Crítica
9.10.2013 | por Ferdinando Martins
Foto de capa: André Porto
Há quase 70 anos, no dia 28 de dezembro de 1943, o grupo Os Comediantes estreava no Teatro Municipal do Rio de Janeiro a segunda peça escrita por Nelson Rodrigues, Vestido de noiva. No elenco estavam Evangelina Guinle (Alaíde), Auristela Araújo (Madame Clessi), Stella Perry (Lúcia) e Carlos Perry (Pedro). Erigido posteriormente como ponto zero do teatro moderno no Brasil, o espetáculo foi resultado da confluência de múltiplos fatores e iniciativas. A começar, pelo esgotamento do sistema teatral vigente até então, focado em comédias e revistas que não atendiam às demandas de jovens artistas e de intelectuais ávidos por renovações cênicas em curso desde a virada do século, mas inéditas no país. A originalidade do texto somou-se à direção precisa de um polonês que veio para o Brasil fugindo da II Guerra – e terminou por ser nosso primeiro encenador – Zbigniew Ziembinski. E ainda a inventividade de um paraibano – também considerado nosso primeiro cenógrafo moderno – Tomás Santa Rosa.
De lá para cá, Vestido de noiva ganhou muitas encenações históricas. Ainda sob os eflúvios do teatro moderno, Cacilda Becker e Maria Della Costa fizeram parte da montagem de Ziembinski, em 1946. Em São Paulo, Sérgio Cardoso e Nydia Licia também encenaram a peça em sua companhia, em 1958. Norma Bengell [que morreu hoje aos 78 anos, em consequência de câncer] foi duas vezes Madame Clessi: em 1976, em uma nova versão de Ziembinski, e em 2008, com o grupo Os Satyros, sob direção de Rodolfo García Vázquez. Em 2009, Gabriel Vilella apresentou sua versão, com Leandra Leal, Marcello Antony e Vera Zimmermann. E no semestre passado, o Grupo XIX de Teatro estreou sua recriação, Nada aconteceu, tudo acontece, tudo está acontecendo, encenada por Luiz Fernando Marques.
Repensar essa obra e as formas de sua encenação não é tarefa fácil. Como todo clássico, o risco de se fazer uma montagem burocrática é grande. Ou, ao contrário, cair em invencionices sem sentido, apenas para subverter as leituras já feitas, também é arriscado. A montagem de Eric Lenate, em cartaz até dezembro no Teatro do Núcleo Experimental, em São Paulo, segue o bom caminho do meio. É inovadora sem exageros, lançando luzes para uma compreensão ampliada do texto e dialogando com as versões anteriores.
Na época em que foi escrito, o texto já era uma inovação em nossa dramaturgia. Composto por três planos, apresenta o acidente de carro de Alaíde (Gabriela Fontana), situando-o na realidade; a lembrança do conflituoso relacionamento com seu noivo Pedro (Jorge Emil) e sua irmã Lúcia (Luciana Caruso), no registro da memória; e o caso da cafetina Madame Clessi (Lavínia Pannunzio) com um adolescente de 17 anos (Laerte Késsimos), no nível da alucinação. O atropelamento ocorre após uma discussão entre as irmãs, mas não se sabe ao certo se foi acidental ou provocado.
Alaíde e Lúcia disputam o amor de Pedro, mas são ambas infelizes, assim com as irmãs Guida e Lígia de A serpente, última peça do autor, de 1978. No sótão da casa de seus pais, Alaíde encontra o diário de Madame Clessi. O público fica sabendo que ali funcionava um bordel por meio de um rápido diálogo entre Gastão (Adilson Azevedo), o pai e a mãe de Alaíde. “O negócio acabava numa orgia louca”, diz ele. Madame Clessi é a primeira de uma série de prostitutas – e bordéis – que vão aparecer em outras peças de Nelson Rodrigues: os prostíbulos frequentados por Glorinha em Perdoa-me por me traíres e por D. Eduarda de Senhora dos afogados; a prostituta Geni, narradora e morta, de Toda nudez será castigada. A imprensa ávida por sensacionalismo que aparecerá em O beijo no asfalto e Boca de ouro já está presente em Vestido de noiva, que no plano da realidade tem quatro repórteres – nas rubricas, eles se misturam às sirenes e buzinas.
Na montagem de 1943, a cenografia de Tomás Santa Rosa traduziu os três planos em uma arquitetura vertical, que localizava para o espectador em qual registro a cena se passava. A iluminação, desenhada pelo próprio Ziembinski, conferia o clima etéreo pelo qual transitava a atenção de Alaíde. Na versão assinada por Lenate, a verticalidade do cenário foi mantida, mas a movimentação dos atores não obedeceu os limites de cada plano. Esse expediente abriu a encenação para possibilidades inéditas e ricas de significados, como no rápido momento em que o buquê de noiva de Alaíde vai parar no caixão de Madame Clessi.
Sabe-se, pelos diálogos, que o dormitório de Alaíde havia sido o da cafetina. Juntos em um mesmo plano, as interseções entre a memória e a alucinação tornam-se mais vivas. O uso do audiovisual também ocorre de maneira instigante. Os filmes, imateriais em princípio, correspondem na peça ao registro da realidade. O clima provocado pela luz é, nesta versão, ampliado por uma densa névoa que vai sumindo sem desaparecer ao longo de todo o espetáculo.
O texto de Nelson Rodrigues possui zonas de incompreensão e jogos de pulsões e gozos nos quais o desejo aparece colado àquilo que os personagens aparentam rejeitar. Alaíde é de um só homem, mas na alucinação mistura-se com as prostitutas. Madame Clessi é de todos, mas foi amada por um, que a matou. Desobedecendo os planos e as definições nítidas, a versão de Lenate reforças essas interseções. O espectador, igualmente clivado em seus desejos, reconhece-se nesses personagens e em suas ambiguidades.
Chama atenção também o bom acabamento do espetáculo, com coreografias bem desenhadas, figurinos bem cortados, objetos de cena elegantes, mas que não interferem no trabalho de ator. Uma música composta por Marcelo Villas Boas, tema para Madame Clessi, denota o cuidado com a produção. Na abertura, o coro de prostitutas aparece em contraluz, remetendo à atmosfera burlesca dos cabarés. A dança feita por elas são um agradável convite ao público para entrar no clima de sensualidade, antes de enfrentar a cruel realidade de mortes e traições.
“Elas”, no caso, se referem às personagens, pois entre elas está Laerte Késsimos, cujo trabalho ganha destaque. Ele vive três papéis bastante distintos: um criado, uma prostituta e o namorado adolescente de Madame Clessi. Como prostituta, ainda que mantenha a voz grave, sua atuação não é caricata nem cômica, causando um potente estranhamento apenas pelo fato de ser incomum. Essa potência, porém, não é vista nos demais figurinos, de época, e alguns demasiadamente óbvios como o vestido branco de Alaíde em oposição ao traje preto de sua irmã.
Este é o último trabalho da produtora Sinal Vermelho em torno da obra de Nelson Rodrigues, cujo centenário foi celebrado no ano passado. Em 2011, a empresa montou Beijo no asfalto, com direção de Marco Antônio Braz e Renato Borghi no elenco. Depois estreou 17 X Nelson e Os sete gatinhos, dirigidos por Nelson Baskerville, e Valsa Nº 6, justamente assinado por Lenate.
Vestido de noiva – Teatro do Núcleo Experimental (r. Barra Funda, 637, Barra Funda, São Paulo, tel. 11 2122-4070). Sexta e sábado, às 21h, e domingo, às 19h. Até 15/12. R$ 30.
Ficha técnica
Texto: Nelson Rodrigues
Direção: Eric Lenate
Com: Gabriela Fontana, Lavínia Pannunzio, Jorge Emil, Luciana Caruso, Laerte Késsimos, Luciana Azevedo, Adilson Azevedo, Fernanda Belinatti, Marcelo Villas Boas, Diego Dac,Micca Segatto
Participação especial em off: José Wilker
1º Assistente de direção e direção de palco: Diego Dac
2º Assistente de direção: Micca Segatto
Equipe de direção de arte: Eric Lenate, David Diniz, Monica Ventura, Camila Fogaça, Fran Barros e Diego Dac
Figurinos e adereços: David Diniz, Monica Ventura e Camila Fogaça
Iluminação: Fran Barros
Cenografia: Eric Lenate
Assistente de cenografia: Diego Dac
Equipe de filmes:Laerte Késsimos, Marco Lomiler, Filipe Luchessi, Aline Ballestero e Bruno Gael
Direção, produção, montagem e finalização: Laerte Késsimos
Direção de fotografia: Marco Lomiler
Assistente de câmera: Filipe Luchessi
Steady cam: Aline Ballestero
Som direto e finalização de som: Bruno Gael
Sonoplastia: Janis Narevicius, Eric Lenate e Laerte Késsimos
Rapsódia nusical ao vivo: Marcelo Villas Boas e Laerte Késsimos
Música original Clessi thème:Marcelo Villas Boas
Costureira:Leci de Andrade
Operação de Som:Janis Narevicius
Máscaras: Kapel Furman
Projeto gráfico: Laerte Késsimos
Realização e produção: Sinal Vermelho Produções Artísticas
Direção de produção: Daniel Keller
Produção executiva: Micca Segatto
Assistente de produção: Janis Narevicius
Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).