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Entrevista

Enrique Diaz e sua caixa de horrores

25.11.2013  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Nathalie Mellot

Em seus filmes, Quentin Tarantino convida o público a rir da violência, a deleitar-se com ela. É dessa mesma espécie de gozo perverso que se alimenta Cine monstro, espetáculo solo de Enrique Diaz.

A obra marca a terceira incursão do criador sobre o universo do autor canadense, Daniel MacIvor. Antes, vieram In on it – trabalho de 2010 que lhe rendeu o Prêmio Shell de melhor direção – e, mais recentemente, A primeira vista.

Assim como nas outras peças de MacIvor, Diaz encontrou em Cine monstro (Monster, no original) um território em que viceja a metalinguagem. O autor possui a destreza de embaralhar narrativas, contando sempre uma história dentro de uma história. A diferença do atual trabalho reside nas emoções que ele se põe a mobilizar.

Saem de cena os afetos amorosos que atravessavam as relações e redimiam, em certa medida, os personagens. Abre-se espaço para ódios latentes que encontram, enfim, uma maneira de se manifestar: ouvimos o relato do filho que assassina o pai e o corta em pedaços no sótão da casa. “Libera-se tudo o que estava recalcado. O autor está jogando com o fascínio que o mal exerce”, comenta o intérprete e diretor.

O crime em família é uma das muitas camadas do espetáculo. Um emaranhado de personagens e tramas se entrelaçam e se misturam como em um caleidoscópio dramático: existe o périplo de um homem que tenta livrar-se da dependência química e arrisca-se a escrever um roteiro para cinema, um menino que se tornou obcecado pelo assassinato que ocorreu na vizinhança, um casal em constante crise, mesmo antes do casamento.

Ao escrever o texto, o dramaturgo, que também é ator e chegou a montar o título, previa um único intérprete para encarnar todas as 13 figuras que propõe. Enrique Diaz adere à proposta lançando mão de apenas algumas alterações de voz para delimitar os limites entre cada um. A ambientação também é minimalista: restringe-se a um fundo branco, uma cadeira e um triciclo infantil.

Enrique Diaz vive 13 personagens

Como em um romance policial, quem assiste recebe pistas para unir as tramas que se cruzam e adquirem novos significados ao final. Há revelações que aumentam a carga de crueldade do enredo. E a cinematografia de horror, explica o diretor e intérprete Enrique Diaz, foi um dos eixos para organizar a encenação. “Existe algo de filme de terror. Mas vai além, poderia ser visto como um filme de toda a história da humanidade, do cinema como uma projeção do inconsciente”, define ele.

Ainda que sustentado por um texto de ficção, Cine monstro evoca o formato dos shows de stand-up. Além de viver vários personagens, Diaz também surge como um mestre de cerimônias e explica, brevemente, o que será visto em cena. “É uma maneira de convidar o público a ver a obra por um viés menos espetacular”, comenta ele, que apresentou uma versão inacabada no Festival de Curitiba deste ano e já cumpriu curta temporada no Rio. “Esse também pode ser um jeito de incluir quem está na plateia sem ser uma peça interativa.”

Traço constante nas criações de MacIvor, o humor é uma das portas de entrada dessa montagem. Um riso que se depara com mortes sangrentas, que advém de sentimentos perversos – indizíveis no cotidiano, mas permitidos aqui. “Como afirmam os budistas, a maneira perfeita de ver a vida é por meio de lágrimas de alegria, ou seja, alegria diante da beleza de todas as coisas e lágrimas por saber que tudo é temporário. Mas acho que é também rir da maneira como levamos tudo a sério quando as coisas são muito simples”, observa MacIvor.

Título é primeiro monólogo do ator

Ainda que soe imprudente retirar efeito cômico de situações como as descritas na peça, esse é também um meio de o autor evidenciar questões que não estão explícitas na narrativa, mas a atravessam: o fascínio que temos pelo mórbido é um desses aspectos. A presença difusa do mal – e sua capacidade libertadora – é outro. Encarar tudo sob viés menos sisudo torna-se também um meio de retirar do texto qualquer veleidade moralista. “Não venho com a postura de dizer para as pessoas algo sobre elas que elas mesmas desconheçam. Não carrego nenhuma verdade para entregar”, pontua Enrique Diaz.

O palco praticamente nu é outra convicção do dramaturgo canadense que essa versão brasileira abraça. “O teatro vazio é um local perfeito e sagrado”, crê MacIvor. “Qualquer coisa que inserimos neste espaço tem de ser essencial para conservar o espírito do teatro puro.” Em sua encenação, na qual contou com a colaboração do diretor Marcio Abreu, Diaz ateve-se ao mínimo de elementos cênicos, mas cria um escape ao se valer de uma série de vídeos, assinados por Batman Zavareze e Nathalie Melot.

Em fluxo não linear e sem ter caráter ilustrativo, as imagens vêm reforçar a aparência de pesadelo que impregna a obra. Também servem qualquer vestígio de drama psicológico. “Queria forçar o público a fazer um jogo duplo”, relata o ator. “Ouvir o texto ao mesmo tempo em que está tomado por aquelas projeções. Oscilar entre uma coisa e outra. Para que cada um pudesse, depois de fechar os olhos, ter apenas uns lampejos de cenas na cabeça.”

Montagem tem cenário minimalista

Cine monstro sinaliza um momento de ruptura na carreira de Enrique Diaz. Em 2012, ele deixou a Cia. dos Atores, grupo referencial para o teatro brasileiro nos últimos 20 anos e para o qual criou títulos como Melodrama (1995) e Ensaio.Hamlet (2004).

Desde a saída, o diretor continua ligado ao teatro de outras maneiras: fez agora o primeiro monólogo de sua trajetória. Faz planos de montar uma peça da japonesa Toshiki Okada, para a qual ainda está em busca de recursos.

Sinais da nova fase também se revelam em áreas que extrapolam as artes cênicas. Recentemente, resolveu entrar para a faculdade de Letras, atuou na série 3 Teresas, da GNT, estreou dois longas como intérprete, integra o time de diretores da novela Joia Rara. “É um lugar mais livre esse que estou agora e me dá a oportunidade de experimentar coisas diferentes” diz ele.

Outra possibilidade em gestação é a criação de uma série televisiva a partir da obra de Daniel MacIvor. As peças In on it, A primeira vista e Best brothers (ainda inédita no País), seriam desdobradas em episódios. Os enredos de cada uma teriam seus núcleos preservados, mas os personagens poderiam se conhecer e se encontrar.

A produção não tem data de estreia prevista e está sendo negociada com a O2, de Fernando Meirelles. Os intérpretes devem ser Emílio de Mello, Fernando Eiras, Mariana Lima, Drica Moraes e, ainda não confirmados, Selton e Danton Mello nos papéis dos irmãos de Best brothers.

Publicada originalmente em O Estado de S.Paulo em 21/11/2013

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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