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Crítica

Afeto e dilaceração do ofício guiam ‘Metrópole’

1.12.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Rodrigo Paulino

Os sujeitos de Metrópole antagonizam o ensimesmar-se e a extroversão. Eu e mundo. Afeto e dilaceração. Casa e cidade. Íntimo e urbano. Os movimentos da vida que há anos separaram os irmãos agora despontam invertidos. Caetano, o ressentido com o teatro, recebe em sua toca a visita de Charles, o jovem ator que o incita a obstinar como d’antes. Em vão?

O texto de Rafael Barbosa mergulha nessa dissonância geracional sem fechar questão para o desassossego ou o desencanto. Deixa que as possibilidades se digam e contradigam. Concretas e subjetivas. Em nome do pai que cindiu os caminhos dos irmãos e da arte que os mantém conectados pela esfera do sensível.

Mesmo quando a escolha recai sobre o afastamento, não se vive mais impunemente após pisar o território artístico. Cinco anos distantes do palco sublimando o ato de cozinhar bolos, doces e salgados não demovem o indivíduo daquele oceano. Barbosa encontra na angústia da desesperança o mote para falar do ofício do ator a partir de seu ventre. Em plano aberto, trata-se de se perguntar sobre a relevância da arte e da cultura para os trabalhadores que delas vivem.

Dramaturgia, encenação e atuação conjugam com intensidade os dois satélites que colidem e se complementam. Os dois atores da Inquieta Companhia de Teatros estão à altura do fluxo de pensamentos filosóficos, diálogos chispantes e suspensões quiméricas, a despeito de o texto ainda mastigar a metáfora mais do que devia se comparando ao poder de síntese alcançado em vários momentos (analogia do corpo humano com os centímetros dobráveis de um origami, por exemplo).

Silvero Pereira, como o irmão mais velho, reafirma talento para transitar registros diferentes de BR trans, solo também programado neste festival, mostrando que paleta do atuante vai longe. A seu lado, Giffony compõe o êxtase juvenil sem caricatura. Ele substitui o intérprete do papel que ajudou a levar à cena nas primeiras apresentações e, portanto, sabe dosar os rompantes e devaneios nos embates noturnos daqueles dois perdidos. O contato-improvisação é um respiro não-verbal que diz muito sobre os laços. Assim como o par de patins dividido em cada um dos pés da dupla, manca e rastejante, evoca a resistência dos búfalos sugerida no texto.

Como primeira direção que assina, Giffony revela domínio para dar carne à arquitetura dramatúrgica. Prova isso radicalizando a cumplicidade do espectador ao inseri-lo no espaço cênico sentado diante de uma parede de espelho, convidando-o a confrontar a imagem desdobrada de si e do outro.

O reduzido campo de ação dos atores denota o grau de intimidade e de complexidade. Na maior parte do tempo, a visão do público é dada pelo reflexo das imagens nos espelhos. Aos atores, cabem corredores do polígono de quatro lados da sala de ensaios do Teatro José de Alencar ou uma fenda ao centro, entre as cadeiras. Portas e janelas também são exploradas como válvulas de escape e de tensão do que é oculto.

Tamanho confinamento não bloqueia o lado de fora. Faz jus ao título da peça o rumor das ruas, a ambientação sonora, o figurino grafitado (ao exagero, diga-se) do irmão mais novo, enfim, as descrições do texto em relação à gente e à geografia da cidade que pulsa aqui dentro.

>> O jornalista viajou a convite da organização do 9º Festival de Teatro de Fortaleza.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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