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Crítica

Silvero Pereira faz manifesto transbordante

1.12.2013  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Victor Augusto

Travestir é verbo teatral por excelência. O ator, diretor e dramaturgo Silvero Pereira faz o prólogo com vestido vermelho e salto alto. Em seguida, despe-se do gênero, troca o calçado por botas e coloca roupa preta base. Camisa regata e calça. É com elas, mais o cabelão comum, que entrelaça sua condição à de outros travestis e transformistas com os quais comunga na estrada da vida. O figurino enlutado dá margem às dores físicas e imorais que rondam a narrativa assim como pode servir às exigências do desempenho corporal nos momentos solares.

O solo BR trans expõe o ser e o artista na pele, sem resignação. Não abdica do humor e da ternura ao refutar firmemente o preconceito e a violência com recursos performativos bem acionados. O principal deles é o canto. Pereira emite timbre de qualidade ao sabor da melodia e dos músculos, da delicadeza e da veemência. Seu domínio de palco é flagrante na maioria dessas passagens em que é acompanhado pelos músicos Rodrigo Apolinário e Caio Castelo (percussão e cordas), à maneira de um cabaré.

O olhar e a voz têm poder de transpassar o espectador da última fila, como na balada caetânica Três travestis. Há organicidade nos registros corporal e vocal, síntese do que a performance pode plasmar da fricção com o teatro, a dança, a música, o vídeo e demais continentes.

No entanto, a segurança na raia musical dá indícios de transbordamentos que acometem o espetáculo dentro do que ele ousa e ambiciona. Campo virtuoso da trajetória do ator, os números de canto surgem como eixo da direção compartilhada com Jezebel De Carli. A partir dele as frequências e sequencias são moduladas.

Interpretar canções na íntegra parece desviar do corpo dramatúrgico que se deseja esculpir. Soam longos os parênteses de uma estrutura que, tudo indica, não é estrita à categoria musical e tem sua potência expressada principalmente por meio do documento vivo (conteúdos de fala e audiovisual).

Silvero Pereira pesquisa travestis e transformistas

Pereira é demasiado codependente da marcação. A cada transição de tempo e espaço paira a ansiedade em dirigir-se para tal posição ou apanhar determinado objeto ou adereço componente da ação seguinte. Transmite preocupação no jogo de transparência em que opera a luz, desenha o habitat narrativo, maneja ainda microfone e demais itens no entra e sai das figuras que evoca no afã de materializar memórias e tocar o público.

O texto, assinado por Pereira, também apresenta dificuldades na organização desse vasto material biográfico ou fruto da pesquisa de campo com travestis de Porto Alegre e da vivência em Fortaleza. Extratos de uma história central e de outras paralelas acumulam-se e não necessariamente são alinhavados como numa coluna poética. Quem sabe, um modo de evitar protagonismo diante das tantas vozes ensejadas nesses escritos de fraternidade.

Entre o relato pessoal e a rede de encontros fica evidente a postura ética para com o outro, a perspectiva sociológica do projeto do Coletivo Artístico As Travestidas. Mas como dar forma ao processo que os criadores definem como “antropológico-esquizofrênico”?

Fusão de vida e intercâmbio Fortaleza-Porto Alegre

A prenunciada estratégia da heteronomia – Gisele/Pereira – dá bons sinais de superposição de planos, mas a montagem não avança nesse sentido, como no embaralhamento de figurinos do início. O terreno da linguagem é propício à fusão de realidade e ficção, e vice-versa. As condições estão dadas.

O estágio atual de BR trans, há apenas cerca de cinco meses da estreia, mostra que a decantação ainda não foi completada. Burilar a transgressão estética com a mesma contundência com que Silvero e todos que representa o fazem na escala de suas existências, eis o tamanho dos desafios que as artes cênicas chamam para si.

>> O jornalista viajou a convite da organização do 9º Festival de Teatro de Fortaleza.

Vídeo projetado em BR trans:

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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