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Crítica

‘Bola de ouro’ tensiona ações públicas e privadas

12.2.2014  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Lenise Pinheiro

Circula nas redes sociais uma charge criada sobre a série de animação Pink e o Cérebro, que tem como personagens dois ratos sempre às voltas com planos mirabolantes para conquistar o mundo. Na arte do chargista, o atrapalhado ajudante Pink pergunta ao seu líder, o Cérebro: “O que vamos fazer em 2014?” A resposta: “O mesmo de todos os anos, tentar emagrecer e ficar rico”. O humor, de ironia cáustica, brota do contraste entre a resposta esperada, “conquistar o mundo”, e a efetivamente dada. Se na síntese da arte gráfica a quebra de expectativa serve ao riso, no espetáculo Bola de ouro uma abordagem similar ganha o tom indignado e grave do acerto de contas.

No programa da peça, Jean-Pierre Sarrazac, dramaturgo e teórico francês autor do texto, afirma ter tido o desejo de investigar o que teria acontecido nas últimas décadas, cada vez mais liberais e globalizadas, com a parcela de intelectuais de sua geração que apoiou as guerras de independência da Argélia e do Vietnã, lutou contra o apartheid e participou do movimento de maio de 1968 na França.

Para tanto, ele inventa como ponto de partida ficcional uma convocação anônima a um grupo de intelectuais para uma reunião no café parisiense que dá título à peça, ponto de encontro de jovens revolucionários na década de 1960. Numa linha dramática convencional o possível reencontro dos camaradas seria o acontecimento temporal e territorial no ápice da trama, e o espectador acompanharia sua preparação até o embate central, e seus desdobramentos. Nesta dramaturgia importa a desestabilização que o chamado provoca.

O enigma sobre o autor das mensagens é elemento-chave da criação. Pluvinage, o pseudônimo adotado pelo misterioso camarada, é personagem de literatura, o anti-herói do romance A conspiração, publicado em 1938 por Paul Nizan (1905-1940) e se inscreve em uma discussão filosófica complexa sobre o tema da traição. Na obra ele trai um grupo de revolucionários. No artigo Os intelectuais e o poder, o filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004) faz referência à polêmica suscitada por Nizan: “Boa parte da controvérsia sobre ética dos intelectuais move-se entre traição e deserção. Trair significa passar ao inimigo; desertar significa abandonar o amigo”. Nizan deixou o Partido Comunista por discordar da condução de poder na União Soviética. Considerado traidor da causa, sofreu o expurgo dos pares e morreu esquecido. Traiu? Desertou? Desertaram dele? No longo artigo, Bobbio afirma ter tomado Nizan como “caso exemplar” para mostrar a complexidade do tema da atuação pública e para “convidar aqueles que falam do papel dos intelectuais a evitar simplificações”. Mesmo correndo o risco de ter cometido uma dessas sínteses rasas, penso que o parágrafo acima dá a medida da empreitada na qual os criadores da montagem brasileira se empenham.

Bola de ouro se funda num sofisticado jogo de espelhamento. O ressentimento pelo desprezo a que foi relegado pelos pares após a acusação de traição mobiliza a atitude do convocador, interpretado por Luiz Amorim. Ele, que vive num porão, conclama os bem-sucedidos companheiros à revisão histórica, e afetiva. Há uma ruptura em jogo e ela se deu na década de 1960. De um lado o traidor – aquele que não aderiu à luta armada? –; do outro o grupo coeso e sua causa justa. Como as convicções de outrora moldam os atos do presente dos antigos camaradas? Celso Frateschi vive o escritor-herói, alcunha com valor de troca no mercado da arte pelo qual circula em incessantes palestras, a realidade social entrevista a caminho do aeroporto. Walter Breda é o jornalista desencantado que, mesmo assim, mantém seu posto na grande imprensa. Marlene Fortuna é A Imóvel, a intelectual que se retirou da vida pública e vive em voluntária reclusão. Completa o quinteto a estagiária do jornal interpretada por Carolina Gonzalez, idealizadora do projeto e tradutora do texto. Filha da Imóvel, ela é impulsionada pelo desejo de investigar a sua própria paternidade, porém a interferência do convocador ampliará sua pesquisa para os embates ideológicos da geração anterior aos quais, ainda que os desconheça, está filiada.

Breda, Carolina, Marlene, Amorim e Frateschi na peça de SarrazacSem créditos

Breda, Carolina, Marlene, Frateschi e Amorim em cena

Na cena polifônica – não há voz predominante – o autor borra a distinção entre solilóquios e diálogos, sendo que quando estes últimos surgem com clareza nem sempre é possível detectar quem são os interlocutores da vez, onde estão, e de qual tempo histórico ecoam suas vozes – “de quem é a palavra?”, pergunta de um ponto indefinido do passado insistentemente a Imóvel.  Trata-se de um procedimento de risco, pois, se por um lado, instiga o espectador a buscar os vetores das falas, por outro impõe uma dificuldade que pode levar o mecanismo formal a exaurir o interesse e abrir um hiato entre palco e plateia.

O referencial literário e filosófico representa obstáculo à produção de sentido, e de afetos, e consequentemente à manutenção do interesse. O simples desvendamento da identidade do convocador enigmático solicita uma elaborada articulação de elementos culturais para que se entenda a disputa em jogo. O autor parece ciente de que até para os franceses esses não são dados facilmente acessáveis na memória, o que o leva a se valer da figura da estagiária e suas pesquisas para esclarecer o espectador. Porém a interação é sempre mais pulsante quando a informação vibra na experiência socialmente compartilhada.

Instaurada entre a dimensão afetiva e a social e política, a tensão de Bola de ouro se esgarça quando a não decifração das referências culturais torna-se obstáculo para a compreensão dos embates em jogo. E questões como ressentimento, investigação de paternidade, doença fatal, vingança – temas caros ao melodrama e presentes no coro de vozes – ganham amplitude e interferem na fruição. Ressalte-se que, como teórico, Sarrazac defende a forma dramática, ou seja, o tratamento de temas sociais pela via das subjetividades. Porém, em entrevista à jornalista Maria Eugênia de Menezes por ocasião de sua visita ao Brasil em 2012, o autor fez questão de enfatizar a distinção entre a dimensão íntima e a doméstica. Sublinhar a última certamente não era sua intenção, e nem as dos criadores da montagem em cartaz em São Paulo.

Bola de ouro pertence à vertente teatral em que a palavra instaura a ação, aspecto que a concepção de Marco Antônio Braz não ignora, reduzindo ao máximo a movimentação dos atores e o uso de objetos, atitude sempre difícil na cena brasileira. No original não há qualquer proposta de movimento, apenas fragmentos de discursos e indicação de um painel com a imagem apagada do antigo café e no qual parte dos textos pode aparecer na forma gráfica. A quase imobilidade pede sutilezas e matizes nas interpretações, a capacidade de expressar intencionalidades e emoções diversas por meio de variações de ritmos, volume e timbre vocais. Os melhores momentos do espetáculo são alcançados nessa linha de atuação.

Texto de Sarrazac é de 2009 e espelha questões atuaisSem créditos

Peça de Sarrazac espelha turbulências sociais

O texto de Bola de ouro é de 2009, o que torna impossível ignorar que sua escritura coincide com período de intensa turbulência na França. Em novembro de 2005 jovens rebelados tomam as ruas dos subúrbios de Paris, incendiando carros e prédios públicos. Jamais totalmente controlada, a rebelião volta a incendiar a periferia de Paris nos anos seguintes. Distúrbios sociais sempre intensificam a cobrança de posicionamento dos intelectuais no espaço público. Não por acaso os convocados para a reunião são dois jornalistas e um escritor. Na produção brasileira Pluvinage veste uma máscara do Anonymous, grupo surgido em 2003 no ambiente da internet com o objetivo de convocar anonimamente interferências coletivas no espaço público. Atualização visual imediatamente reconhecível e muito pertinente.

Bola de ouro – Qui. e sex., às 21h. Teatro Faap (r. Alagoas, 903, Higienópolis, São Paulo, tel. 11 3662-7232). R$ 30 e R$ 40 (sex.). Até 7/3.

Ficha técnica:

Texto: Jean-Pierre Sarrazac

Tradução: Carolina Gonzalez

Direção: Marco Antônio Braz

Com: Carolina Gonzalez, Celso Fratescchi,  Luiz Amorim, Marlene Forturna e Walter Breda

Assistente de direção: Marcelo Peroni

Cenografia e figurinos: Sylvia Moreira

Música: Zema Tämatchan

Iluminação: Fran Barros

Programação visual: Benoit Jeay

Fotografia do programa: Erik Almeida

Fotografia de cena: Lenise Pinheiro

Visagismo: Emerson Murat

Camareira: Cida Neves

Operador de luz: Bianca Livonius

Operador de som e vídeo: Zema Tämatchan

Contrarregra 1: Henrique Andrade

Contrarregra 2: Tomé de Souza

Direção de produção: Henrique Benjamim

Assistente de produção: Fernanda Lorenzoni

Produção administrativa: Fabio Hilst

Assessoria de Imprensa: Eliane Verbena

Assessoria jurídica: Martha Macruz de Sá

Assessoria contábil: Paulo Exel

Idealização: Benjamim Produções

Realização: Sesc – Serviço Social do Comércio

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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