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Reportagem

Golpe de cena

24.2.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Fernando Kinas

A tortura, os interrogatórios, o exílio. São temas que saíram de cena a partir dos anos 1980, com a redemocratização do País. Mas que, gradativamente, voltam a ocupar os palcos.

Às vésperas da efeméride que marca os 50 anos do golpe militar – que ocorreu em 31 de março de 1964 -, uma série de montagens revisita a problemática que o Brasil levou tanto tempo para conseguir encarar de frente. E, ao menos cinco delas, podem ser vistas nos próximos meses. “Nos últimos anos, as coisas estão começando a aparecer. Mas ainda é uma questão difícil de ser aberta. Uma panela de pressão que não conseguimos destampar”, comenta Claudia Schapira, diretora do espetáculo Orfeu mestiço – Uma hip-hópera brasileira. “Cada lugar tem um modus operandi. Alguns países já fizeram esse exame. No Brasil, isso só está acontecendo agora”, comenta ela, que tem origem argentina, mas vive em São Paulo.

De fato, o teatro latino-americano já reflete sobre suas ditaduras há muito mais tempo. No Chile e na Argentina, uma vasta produção dá conta dos horrores vividos durante esse período bem como de suas sequelas.

No Orfeu mestiço as ações não se passam apenas no passado. É em um tempo bem recente que o protagonista precisa lidar com a perda. Logo depois do AI-5, Orfeu viu sua mulher ser arrastada aos porões do Dops e desaparecer. Durante 30 anos, ela pairou como um fantasma sobre sua vida. Até ele receber uma carta, em 1998, sendo chamado a reconhecer sua ossada.

Tal qual um cadáver insepulto, o regime militar no Brasil ainda não foi devidamente exumado e enterrado, acreditam os artistas que resolvem se deter sobre esse mote. Cantata para um bastidor de utopias, criação da Cia. do Tijolo que acaba de retornar ao cartaz, debruça-se sobre um aspecto negligenciado da herança nefasta dos anos de chumbo: não foram apenas os artistas e intelectuais, integrantes da classe média, que foram mortos e torturados. “A historiografia não lembra dos trabalhadores que morreram. Mas eles foram muitos. Entre as vítimas também havia pobres, pretos, miseráveis”, pontua Dinho Lima Flor, ator e um dos idealizadores do espetáculo. São rememoradas as trajetórias de vítimas quase desconhecidas, como João Virgílio e Manuel Freire Filho. “Queremos fazer falar àqueles que tiveram suas vozes caladas”, observa Lima Flor.

Obra da Cia. Tijolo entrecruza Lorca e BrasilSem créditos

Obra da Cia. Tijolo entrecruza Lorca e Brasil

A importância da revisão histórica do período é inequívoca. Uma das particularidades dessa nova safra de montagens, porém, está na abertura que seus criadores pretendem dar ao assunto, fazendo conexões com o que aconteceu em outros países e épocas. Na Cantata, os depoimentos de vítimas brasileiras são amarrados à luta de Mariana Pineda – mártir espanhola que lutou contra a monarquia – e de Federico García Lorca – poeta que foi um dos 30 mil assassinados pela Guerra Civil que levou o general Franco ao poder. A violência que explode hoje nas grandes cidades brasileiras é outra das paisagens que aparecem na obra.

Em Morro como um país, a cia. Kiwi de Teatro também explodiu as fronteiras. Em cerca de 30 cenas independentes, o foco do diretor Fernando Kinas não é uma situação de violência específica, mas a suspensão do Estado de Direito e das liberdades individuais em diferentes contextos. “São esses momentos de exceção que acontecem normalmente durante as ditaduras, mas também podem ocorrer durante os períodos de normalidade democrática”, comenta o encenador, que mesclou trechos de obras literárias com registros documentais no espetáculo. Também neste caso, os vínculos com a atualidade ficam patentes. “Existe um recrudescimento em curso hoje. Pessoas que não têm nenhum pendor ditatorial, por exemplo, são capazes de defender uma lei antiterrorismo contra as manifestações”, diz Kinas, que fez a peça se apoiando no texto do grego Dimitris Dimitriadis.

Em Pedro e o capitão, o autor é o escritor uruguaio Mario Benedetti. Mas a situação representada remete diretamente ao que se passou por aqui. O público acompanha as sessões de interrogatório entre um preso político e um oficial militar. E permanece no ar, sem resposta, a pergunta que o homem alquebrado lança a seu algoz: “Como é que um homem, se ele não é louco nem uma besta, pode se tornar um torturador?”.

Na época, foi preciso driblar a censura

Antes do golpe chegar, o teatro brasileiro já havia dado sua guinada política. O surgimento do Teatro de Arena, em São Paulo, durante os anos 1950,vinha inaugurar um novo momento na cena do País: as preocupações sociais ganhavam espaço. A dramaturgia nacional também. É dessa época Eles não usam black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri (1958): texto que tratava de problemas que o público conseguia identificar em sua realidade. As estreias de Chapetuba futebol clube, de Vianinha (1959), e de Revolução na América do Sul, de Augusto Boal (1960), também engrossavam essa corrente.

Coma instalação de uma ditadura militar, o Arena acirra suas posições e passa a querer responder aos acontecimentos de forma ainda mais contundente. Arena conta Zumbi, criação de Boal e Guarnieri, inaugura essa fase.Fala de resistência a uma força opressora e da possibilidade de revolução. Com o AI-5, decretado em1968, as peças de protesto contra a ditadura se reinventaram. Era um teatro que precisava driblar as restrições impostas e, ao mesmo tempo, conseguir dar conta da complexidade daquele momento nacional.

Além da turma do Arena, tiveram importante participação nessa época, dramaturgos como Dias Gomes, Plínio Marcos, Leilah Assunção, Chico Buarque, José Vicente. Espetáculos como Rei da vela e Roda viva, ambos dirigidos por José Celso também foram marcos dessa geração, duramente reprimida.

Atos heroicos à parte, é preciso dizer que o saldo da ditadura para o teatro foi a sua quase completa aniquilação. Morreram as companhias, faliram os produtores, perderam lugar os autores. Uma triste história da qual ainda somos vítimas.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. C1, em 24/2/2014.

Relação carrasco/torturado no texto de BenedettiSem créditos

Relação carrasco/torturado no texto de Benedetti

Serviço:

Pedro e o capitão – Teatro Jaraguá (Rua Martins Fontes, 71, Novotel Jaraguá, tel. (11) 3255-4380. 3ª a 5ª, às 21 h. R$ 20.

Cantata para um bastidor de utopias – Galpão do Folias (Rua Ana Cintra, 213, Campos Elísios, tel. (11) 3361-2223. R$ 40. Sáb. e dom., 20h. Até 23/3.

Orfeu mestiço – Uma hip hópera brasileira – Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (Rua Dr. Augusto de Mirada, 786, tel. (11) 3803-9396. 6ª e sáb., 21h; dom., 20h. Contribuição voluntária.

Morro como um país – CIT-Ecum (Rua da Consolação, 1.623, Consolação, Tel. (11) 3129-9132. 4ª e 5ª, 21h. De 26/3 a 17/4.

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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