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Reportagem

Decepção divina

17.3.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: João Caldas

Misericordioso, justo, piedoso. Mas também vingativo. Dado a rompantes de ódio e caprichos inexplicáveis. Deus não está nada satisfeito. Está descontente com o homem. Imensamente decepcionado consigo próprio. Não sabe mais o que fazer. E, depois de muito relutar, resolveu partir para a terapia.

Em Meu Deus!, espetáculo que Irene Ravache e Dan Stulbach protagonizam a partir do dia 28, no Teatro Faap, tematiza-se esse improvável encontro. Sem aviso, uma analista recebe em seu consultório a visita inesperada do Criador. Ele relata não ter mais vontade de nada. Não se interessar por nada. Nem ter expectativas. O diagnóstico é certeiro: depressão.

Ainda que envolto em discussões filosóficas e amparado pela psicanálise, o texto da israelense Anat Gov não resvala em academicismos. “Ela não está falando de religião. Nem usa um tom didático. É uma discussão mais ampla”, observa Irene Ravache, que interpreta a psicanalista Ana.

Montada pela primeira vez no Brasil, a obra já mereceu montagens em outros países. Em Buenos Aires, tornou-se imenso sucesso. “Um dos segredos da peça talvez seja a união da discussão inteligente com a comédia”, crê o diretor Elias Andreato.

Ao longo do espetáculo, mesmo quando Deus enfrenta seus maiores dilemas de consciência, a dramaturga não renega um olhar bem humorado às situações. A psicanalista não costuma perder a chance de ironizar as carências desse “senhor supremo”. Ri da sua necessidade de amor e da sua vaidade desmedida. Satiriza as injustiças que Ele cometeu e os horrores descritos no Velho Testamento.

“É com muita leveza que a autora conduz essa discussão”, aponta Stulbach, a quem coube o papel de Deus. “A peça tem muito desse humor judaico, que consiste quase sempre em rir de si próprio.” O tom cômico ganha significado extra se considerarmos o contexto em que Meu Deus! foi escrita. À época, Anat Gov enfrentava um tratamento de câncer e morreu menos de um anos após a estreia da peça.

Acerto de contas

No universo masculino de divindades que temos delineado no imaginário, espaço onde imperam Deus, Jesus e seus apóstolos, a dramaturga Anat Gov introduz uma mulher como elemento dissonante e desorganizador. No espetáculo Meu Deus!, cabe a uma psicanalista (Irene Ravache) amparar o Criador em apuros. Mas, também, levá-lo a repensar suas atitudes.

Não sabemos ao certo por que Ana foi a escolhida para a sagrada e inglória tarefa de analisar Deus. “Ela também não sabe”, observa Irene. Ao longo da obra, porém, o público recebe algumas pistas que ajudam a desvendar os motivos da predileção divina.

Ela cuida majoritariamente de crianças. Possui um filho autista, que nunca conseguiu sequer chamá-la de mãe. Além disso, essa terapeuta não está entre suas maiores “fãs”. Tampouco faz parte do seu séquito de bajuladores – termo utilizado pelo personagem de Dan Stulbach para referir-se aos devotos de fé cega. Ele, afinal, não está em busca da aceitação, mas do enfrentamento.

Desde a infância essa psicanalista deixa evidente a sua desconfiança em relação a Deus. Não seria exato falar em ateísmo. Mas, já que ela o cobra e o questiona incessantemente, talvez essa seja uma relação que careça de ajustes. Durante essa sessão de terapia acompanhada pela plateia, o encontro entre os dois atravessa diversos momentos. De desconfiança, rejeição, compreensão e reconhecimento.

Quando um homem lhe surge dizendo-se Deus, a primeira reação de Ana é de descrença. Talvez seja um louco, com rasgos de onipotência. “Você não é a primeira pessoa com esse tipo de … de … problema”, ela arrisca a lhe dizer. “Isso é muito comum hoje em dia. … muita pressão. Todo mundo quer se dar bem…”

Como ele parece saber tudo sobre a sua vida, a analista também cogita a possibilidade de tratar-se de um espião. Quem sabe um funcionário do Mossad (o serviço secreto israelense)? Mas esse homem que pede para ser chamado de D. conhece coisas que ela nunca revelou a ninguém. Suas angústias mais secretas, pensamento que ela nunca ousou dividir com ninguém. Depois de relutar, ela termina por se render e segue ao seu lado nessa jornada de autoconhecimento. “É um questionamento de coisas que já estão estabelecidas, diante de alguém que irá instigá-lo”, diz a atriz.

Irene Ravache e Dan Stulbach levam Deus ao divãSem créditos

Irene Ravache e Dan Stulbach levam Deus ao divã

Mas qual será, afinal, a crise desse Deus? “A crise de Deus é a crise da humanidade. É a crise do homem contemporâneo. As pessoas acabam se reconhecendo em muitas das dúvidas e das questões dele. Claro que existem problemas que são particulares Dele, que só Deus pode ter. Mas há muitos conflitos da sociedade, que poderiam estar nas páginas de qualquer jornal.”

Interpretar o Todo Poderoso não é um tarefa trivial. “Não é sempre que se tem a oportunidade de viver Deus”, ressalva Stulbach. Por isso mesmo, a escolha de um ator para o papel precisou levar em conta alguns quesitos. “A escolha do Dan para fazer Deus talvez misture uma série de fatores”, considera Irene. “Ele consegue se diferenciar a cada trabalho e não tem nenhum rótulo que o identifique. Dependendo do intérprete, mesmo que seja um bom ator, você já o identifica com uma imagem imediatamente. Ao mesmo tempo, era preciso uma personalidade forte para esse papel.”

Toda sessão de terapia costuma começar seguindo um mesmo script. O analista faz a pergunta: “O que te trouxe até aqui?”. Em Meu Deus!, essas respostas vão surgindo gradativamente. “Até profissionalmente as coisas não vão bem para Ele. Afinal, a sua ‘obra’ não está dando muito certo”, ironiza Irene Ravache. “Mas vamos ver que o problema é ainda maior.”

Culpa

Para o diretor Elias Andreato, o que atormenta Deus é sua imensa carga de culpa. “Esse Deus tão cruel, tão ameaçador, mas que se sente tão abandonado, precisa tratar essa culpa. A psicanálise trabalha com as fraquezas do ser humano para chegar àquilo que é mais primário em nós: amar, se perdoar, perdoar o outro.”

A estrutura proposta pela dramaturga israelense é simples. Adaptado do original por Jorge Schussheim e com versão brasileira de Célia Regina Forte, o título propõe um encontro com um espectador comum, sem reivindicar-lhe formação prévia sobre o tema no qual se está imerso. “Quando assistimos a algo e nos julgamos mais inteligentes do que aquilo que está em cena tendemos a rejeitar”, opina Andreato. “Por outro lado, se é algo muito além da minha percepção, a tendência é me distanciar. A autora consegue manter a discussão em uma medida que é muito próxima a todos nós.” À simplicidade da sua dramaturgia, Anat Gov alia o humor: trunfo maior da peça, segundo o encenador. “Através da brincadeira, é possível se entender de forma mais generosa. A comédia é, muitas vezes, considerada um gênero menor. Mas é aí que o público está mais disponível, menos armado, para encarar uma real reflexão.”

Deus irá empreender a sua via-crúcis em busca de perdão. Mas Ana não sai indiferente da jornada. Ela também se deixará afetar pelo encontro. O sofrimento pode ser um meio de se entender, de crescer e viver melhor. Mas ela aprenderá que não é o único.

Produção marca volta de Irene Ravache aos palcos

Irene Ravache estava longe dos palcos desde 2008, quando protagonizou a peça A reserva, de Marta Goés. Mas a ausência não foi programada.

“É que eu não sei lidar com essa história de fazer televisão e peça ao mesmo tempo. Tem sempre aquela coisa de sair atrasado da gravação, de precisar ter um stand in, de achar sempre que não vai conseguir, que vai perder o horário”, conta a atriz.

Nesse período, ela brilhou na novela Passione (2010) e também no recente remake de Guerra dos sexos (2012). Mas, terminado seu contrato de três anos, não demoru a retornar ao habitat no qual sempre se sentiu mais à vontade – o palco.

Apesar de destacar-se na tela, Irene é, sobretudo, uma atriz de teatro. Não por acaso, quando se lança a um projeto, costuma fazer longas temporadas.

Foi assim com Intimidade indecente (2000), por exemplo, imenso sucesso de Leilah Assumpção, que permaneceu três anos em cartaz.

Em Meu deus!, espetáculo que ela protagoniza agora com o ator Dan Stulbach, a intérprete conta ter encontrado um texto, em suas palavras, “parecido com as coisas que me interessam falar”. Uma obra que propunha uma reflexão profunda e radical sobre um tema específico.

Assim ela fez em De braços abertos, que empreendia um mergulho na relação conjugal. Ou em Filhos do silêncio, no qual detinha-se sobre o universo dos surdos-mudos.

Espetáculos de mostra discutem ecos da figura divina

Criação de Castellucci para a Socìetas Raffaello Sanzio

Dois espetáculos que passaram pela cidade durante a MITsp – Mostra Internacional de São Paulo, encerrada no domingo, também colocam Deus sob escrutínio. Na Europa, causaram protestos e fizeram centenas de católicos saírem às ruas.

Do italiano Romeo Castellucci, Sobre o conceito de rosto no filho de Deus é, segundo o seu criador, “uma reflexão sobre o ocaso da beleza”. Em cena, acompanhamos o sacrifício
de um filho às voltas com o pai idoso.

Fraldas geriátricas e excrementos sintéticos dividem o palco com uma reprodução da imagem de Cristo pintada pelo artista italiano Antonello de Messina. “Para os cristãos, e não apenas para os católicos, a imagem de Jesus suscita a ideia de beleza, mas de uma beleza, digamos, complicada. É uma beleza que traz, em si, a memória do sofrimento, da paixão. Que nos lembra da cruz com o instrumento de tortura”, diz o diretor.


Gólgota picnic
, do argentino Rodrigo García, analisa acidamente a mensagem deixada por Jesus Cristo. Aponta suas contradições, fraquezas, bem como desmascara o que seriam os seus pretensos atos de bondade. Para ambientar esse enredo, um palco coberto de pães de hambúrguer representa o local onde Cristo foi crucificado. A obra se completa com um concerto de um pianista. Nu, ele interpreta As últimas sete palavras de Cristo na cruz, do compositor Joseph Haydn.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, Caderno 2, páginas C1 e C3, em 16/3/2014.

Serviço:
Meu Deus!
Onde: Teatro Faap (Rua Alagoas, 903, Higienópolis, São Paulo, tel. 11 3662-7233)
Quando: Sexta, às 21h30; sábado, às 19h e 21h30; e domingos, às 18h.
Quanto: R$ 60 a R$ 80

Ficha técnica:
Texto: Anat Gov
Adaptação: Jorge Schussheim
Tradução: Eloísa Canton
Versão: Célia Regina Forte
Direção: Elias Andreato
Com: Irene Rache, Dan Stulbach e Paulo Carvalho
Cenário: Antonio Junior
Figurino: Fause Haten
Iluminação: Wagner Freire
Trilha sonora: Jonatan Harold
Assessoria de imprensa: Daniela Bustos e Beth Gallo – Morente Forte Comunicações
Programação visual: Vicka Suarez
Fotos: João Caldas
Assistente de direção: Andréa Bassitt
Assistente de iluminação: Alessandra Marques
Assistente de figurino: Gabriela Marumoto
Assistente de fotografia: Andréia Machado
Assessoria contábil: Marina Morente
Assistente de produção: Celso Dornellas e Thaís Peres
Administração: Magali Morente
Produção executiva: Kátia Placiano
Coordenação de projetos: Egberto Simões
Produtoras: Selma Morente e Célia Forte
Realização: Morente Forte Produções Teatrais

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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