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Crítica

Deslocamentos e ironias vitais

11.3.2014  |  por admin

Foto de capa: Christophe Raynaud de Lage

Um casal de noivos entra e dá uma volta em círculo no palco. Do lado direito, um grupo de músicos. Na segunda volta, ele coloca a mão no ombro dela e fala algo ao seu ouvido. Depois parece bêbado (da festa?). Mudam de posição, de ritmo. Outro homem com perna amputada e com muletas vai atrás. O barulho metálico das muletas grita. Depois de uma volta, ele pisa no vestido da noiva e congela. Continua o percurso. Pisa novamente no vestido dela e paralisa a cena, como numa fotografia. O homem das muletas chuta a mulher. Ela cai. E depois se agarra ao pescoço dele. É arrastada. Tenta se segurar a outras partes do corpo dele. Ele pula como sapo. Ela sobe no seu ombro.

Lembrei-me da canção O quereres, de Caetano Veloso (“Ah! Bruta flor do querer / Ah! Bruta flor, bruta flor”). Esses desejos que se alternam, esses quereres em permanente deslocamento. Deslocamento, aliás, é uma chave de leitura para o espetáculo Nós somos semelhantes a esses sapos…, da companhia MPTA – Les Mains, les Pieds et la Tête Aussi (As Mãos, os Pés e a Cabeça Também), que apresentou em seguida o duo Ali.

As andanças pelo palco, em círculos primeiramente e em muitos outros desenhos. O deslocamento do eixo gravitacional provocado pela falta de uma perna de Hedi Thabet e que se expande para os outros dois bailarinos. A provocação do deslocamento do olhar do espectador. E ainda a projeção dos deslocamentos migratórios mundiais e suas questões de identidades, também ressaltadas pelo repertório musical (melodias tradicionais tunisianas e gregas – rebetiko) e a ascendência dos artistas.

O corpo mutilado vai à luta. Subverte lógicas. Desafia o outro. A linguagem física é rica de significações. Alteridade: um e outro no fluxo do desejo por uma mesma mulher, alternância equilíbrio/desequilíbrio dos corpos, desafio às leis da gravidade. Acrobacias de tirar o fôlego. Esses “sapos” borram fronteiras. Saem dos eixos em seus giros. Imagens de potência em constante construção – uma rainha gigante com três pernas ou o gozo da noiva lânguida, Artemis Stavridi, erguida sobre o corpo de Hedi Thabet. Com os movimentos acrobáticos e de dança contemporânea, Nós somos semelhantes… explora a aventura de um triângulo amoroso plausível, que avança em oposições contraditórias no deslocamento do desejo.

Já em Ali, as muletas se transformam em objetos de ligação entre os dois homens. Cumplicidade, companheirismo, afeto entre Mathurin Bolze e Hedi Thabet. Eles se desafiam e confundem, se desdobram, se encaixam numa plasticidade comovente. O corpo pode ser outro, de outro modo, outro ser vivente. E o humor e a ironia permeiam os dois espetáculos. Mais grave em Nós somos semelhantes…, com suas ameaças de perda e mais vitalizante em Ali, com sua força e alegria de viver.

.:. Texto escrito para o Coletivo Crítico, uma das ações do segmento Olhares Críticos na MITsp.

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