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Reportagem

Matéi Visniec seduz criadores brasileiros

28.3.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Vitor Iemini

De repente, um romeno se torna o autor mais popular do teatro brasileiro. Há um ano, Matéi Visniec era praticamente um desconhecido no País. A recente edição de suas obras em português, porém, parece ter despertado um séquito de interessados em sua dramaturgia. Durante o Festival de Curitiba, a maior vitrine das artes cênicas nacionais, o escritor merece duas montagens: 2 x Matei, dirigida por Gilberto Gawronski, e Espelho para cegos, versão de Marcio Meirelles. Em São Paulo, a tônica não é diferente. Estreia na cidade História do comunismo contada aos doentes mentais, com encenação de Miguel Hernandez e André Abujamra.

Saudado pelos críticos europeus como um sucessor de Eugène Ionesco, Visniec constrói fábulas em que a política foge do discurso dogmático para encontrar a comédia e o absurdo. “Em geral, tudo o que escrevo tem um personagem principal: o homem e suas contradições, tanto as de sua natureza interior, como aquelas da sociedade e da história”, comentou o dramaturgo em entrevista ao Estado. “Mas eu gosto de explorar essas contradições humanas com os ‘braços’ do humor, da ironia, do escárnio.”

Outro traço constante na obra de Visniec é a presença de personagens históricos. Em suas encenações, reencontramos Stalin, Meyerhold, Tchekhov. Homens que surgem remodelados pela sua imaginação. Mas que ainda assim evocam um mundo que, de fato, existiu. “Às vezes, a realidade, sua complexidade, ultrapassa a ficção. Stalin, por exemplo, é um personagem que você não pode inventar. Ele é tão complexo, incrível, terrível”, considera o autor.

Guida Vianna e Gilberto Gawronski em peça de romeno

Para Gawronski, o procedimento tem uma função. “Na contemporaneidade, a originalidade não está em construir, mas em desconstruir. Essa não é exatamente uma novidade. Mas o que Visniec faz é resgatar essas figuras que ainda precisamos entender”, comenta. Além de assumir a encenação de 2x Matei, ele também contracena com Guida Vianna na montagem que se apoia nos textos O último Godot e O rei, o rato e o bufão do rei. Na parte inicial do espetáculo, o público presencia o improvável acerto de contas entre Samuel Beckett e sua mais conhecida criação. Apesar da fama, Godot é o personagem que nunca aparece na obra do escritor irlandês e, nessa releitura, ele acha que já é hora de acabar com isso. A segunda história trata de um rei e seu bobo da corte, ambos feitos prisioneiros após uma revolta popular. O contexto lembra a Revolução Francesa. Fala-se na filosofia iluminista de Diderot e na ameaça representada pela guilhotina. Mas as menções históricas não impedem aproximações com a situação política atual. “Ele está falando de uma crise que é de todos. De uma falência geral”, observa Gawronski.

Censurado pelo regime comunista de Nicolae Ceausescu, que vigorou na Romênia por mais de 40 anos, Visniec pediu asilo político e vive em Paris desde 1987. Suas obras carregam, portanto, um olhar crítico em relação às formas autoritárias de poder. Mas não deixam de problematizar as contradições das democracias ocidentais. “É fácil denunciar o mal em um país totalitário. Nesses lugares, o mal é visível. Mas na França, como em outras democracias, identificar a maldade exige mais reflexão. O artista deve tentar reconhecer essas formas mais sutis de dominação”, pondera o escritor.

Inspirado pelo título Teatro decomposto ou o homem-lixo, o Teatro Vila Velha, de Salvador, concebeu Espelho para cegos. Na peça, entram em debate questões como a dissolução das relações humanas e a solidão. “Visniec traz tudo o que eu gostaria de falar e não sabia como dizer”, diz o diretor Marcio Meirelles.

‘Espelho para cegos’, direção de Marcio Meirelles

Com a História do comunismo contada aos doentes mentais esse passado do dramaturgo também volta à tona. Mas sem o viés do ressentimento. “Ele está falando do ideal comunista em sua pureza. E nós hoje carecemos de utopias”, considera o diretor Miguel Hernandez.

Atravessada por metáforas, a trama reconstitui o ano de 1953, meses antes da morte de Stalin. E se movimenta a partir de um mote cômico: um escritor é convocado a escrever um manual que explique o ideário socialista para os loucos. “Olharmos hoje para tudo isso, quando já sabemos o que aconteceu com a União Soviética, causa um imenso estranhamento.”

Quem é:
Matéi Visniec. Nascido na Romênia, em 1956, o escritor, dramaturgo e jornalista vive em Paris e se naturalizou francês. Com formação em história e filosofia e escreve peças de teatro desde a década de 1970. Obteve grande sucesso na França, Romênia e já foi montado em mais de 20 países. Teve
sua obra recentemente traduzida para o português pela editora É Realizações.

Serviço:
A história do comunismo contada aos doentes mentais
Teatro Cacilda Becker (Rua Tito, 295, Lapa, São Paulo, tel. 11 3864-4513).
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h. Até 27/4.
Quanto: R$ 10.

2 x Matei
Onde: Teatro Poeirinha (Rua São João Batista, 104, Botafogo, Rio de Janeiro, tel. 21 2537-8053).
Quando: Estreia hoje para convidados. Quinta a sábado, às 21h; domingo, às 19h. Até 18/5.
Quanto: R$ 40.

23º Festival de Teatro de Curitiba
Quando: abre para convidados amanhã. Programação de 26/3 a 6/4
Quanto? R$ 60. Mostra paralela/Fringe: de entrada franca a R$ 60. Mais informações, aqui.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C10, em 28/3/2014.

.:. A repórter viajou a convite da produção do festival.

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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