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Crítica

MITsp é vítima do próprio sucesso

19.3.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Ligia Jardim

O maior problema da MITsp foi o seu sucesso. Em sua primeira edição, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo surpreendeu a cidade e os organizadores com o imenso afluxo de público. Nos nove dias de programação, cerca de 14 mil pessoas acompanharam os espetáculos e as atividades paralelas. Mas um número muito maior do que esse acorreu às filas e ficou de fora. A espera por um espetáculo chegou a dez horas. E muitos não desistiam mesmo quando a chance de conseguir um lugar parecia ser mínima.

As plateias lotadas tinham um motivo: a consistência da programação, que teve coordenação artística de Antonio Araujo, diretor do Teatro da Vertigem, e direção de produção de Guilherme Marques. Concretizou-se a pretendida filiação com os antigos festivais de Ruth Escobar: assim como aconteceu nos anos 1970, novos espectadores (além de jovens, muitos não eram frequentadores habituais de teatro) puderam ter experiências inspiradas e formadoras. Tão marcantes quanto a primeira vinda de Bob Wilson, em 1974, para apresentar The life and times of David Clark.

Mesmo sem um eixo definido, alguma coincidência temática pôde ser sentida na escolha das peças. Salta aos olhos, por exemplo, o ataque à figura divina empreendido por Gólgota picnic, do argentino Rodrigo García, e por Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, do italiano Romeo Castellucci. Os regimes autoritários também tiveram sua recorrência em títulos como Escola, do chileno Guillermo Calderón, e Ubu e a comissão da verdade, dirigido pelo artista sul-africano William Kentridge. A presença dessas semelhanças, porém, está longe de esgotar o sentido da curadoria, que mergulhou em linguagens diversas e trouxe um acurado panorama do teatro contemporâneo. Se há uma grande convergência entre as 11 criações apresentadas ela está na insistência em problematizar as artes cênicas e sua fruição.

Encenação do artista sul-africano William Kentrdige Sem créditos

Encenação do artista sul-africano William Kentridge

Constantemente, o espectador viu seu lugar ser desestabilizado. Quem deveria apenas contemplar foi convocado a completar o sentido daquilo que lhe era exposto em cena. Inventar para si um olhar era a prerrogativa para assistir a espetáculos como Hamlet, do lituano Oskaras Koršunovas, Bem-vindo à casa, do diretor uruguaio Roberto Suárez, ou Anti-Prometeu, da encenadora turca Şahika Tekand.

A grade de atividades que cercava a programação também veio ajudar o público nessa tarefa de desdobrar maneiras de ver e apoderar-se do que foi encenado.

Houve discussões com criadores e especialistas, bem como a preocupação em estabelecer uma rede de recepção crítica para esses espetáculos.

A próxima edição da MITsp já tem data marcada: 6 a 15 de março de 2015. E deverá dar conta da imensurável demanda detectada. Será preciso ampliar o número de apresentações de cada título. Também vale rever a forma de distribuição de ingressos. Ainda que justa, a gratuidade talvez não seja necessariamente o meio mais democrático. Todas as ressalvas podem e devem ser feitas.

O que não se pode fazer é tentar imputar ao festival responsabilidades que não lhe cabem. A deturpada relação que temos com o espaço urbano, a ausência de opções de lazer na periferia, a deficiência dos mecanismos de distribuição de recursos por meio de incentivos fiscais. Nada disso é culpa da MITsp. E muito provavelmente não cabe a ela solucioná-los. Ao menos, não sozinha.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p. C6, em 18/3/2014.

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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