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Crítica

O convívio teatral em frente, verso e de permeio

11.3.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Manuel Geanoni

A criação da companhia uruguaia Pequeño Teatro de Morondanga resplandece o todo em cada uma de suas partes. Somos convidados a acionar o espírito lúdico e cotejar os mínimos detalhes com a disponibilidade de um ourives. Há um engenhoso paroxismo de unidade nos sujeitos, cenas, objetos e espaços descentrados de Bem-vindo à casa (2012), composição de dois espetáculos umbilicais que pedem para ser vistos em sequência, episódios um e dois, por plateias e em horários distintos, ainda que plantados no mesmo lugar. Unidade porque impressiona como tudo funciona, até os tempos mortos pulsam na gangorra entre o que é e o que assim nos parece ser.

Estamos diante de uma experiência que elabora o convívio público-artista em seu sentido estrito, reflexão cara à arte contemporânea atenta às vicissitudes do viver junto. O princípio da coabitação vaza para as ruas, a comunidade. Palco abolido, a proximidade no espaço multiuso implica plateia aninhada com os atuadores no mesmo cômodo. Parede-meia, janela, persiana e portas induzem sonoridades e frestas do que poderia ocorrer simultaneamente do outro lado. Dentro e fora em contato: um achado de geografia cênica paulatinamente afetiva ao longo das duas sessões.

A dramaturgia coletiva e a direção de Roberto Suárez são lapidares na apropriação cinematográfica que as movem e no modo como não abrem mão da materialidade teatral, do inefável que está por trás dessa linguagem deliciosamente promíscua em sua sofisticação artesanal.

A inutileza que graça no nome do grupo – “morondanga” é uma expressão depreciativa em castelhano – condiz com a plataforma do precário da qual o projeto extrai beleza. É a vitória do remendo, da sujeira, do tosco e do avesso como solução formal bem sustentada. Transgressões sutis para dar luz ao efeito que não tem nada de especial e, uma vez exposto, torna-se singular e ancestral sem o menor conflito. O roteiro saúda o teatro dentro do teatro que Pirandello legou no início do século passado e a atmosfera de Lynch no filme O homem elefante (1980), baseado na história real de um cidadão britânico vítima de doença congênita. Dispensa-se, para tanto, projeções. O audiovisual está a serviço da palavra e das espacialidades físicas, sonoras, além da luz.

Deformações corporais e morais atravessam as dramaturgias do texto e da cena com lampejos do “esperpento” na literatura do espanhol Ramón del Valle-Inclán (1866-1936), distorcendo da realidade os atalhos para o grotesco e o absurdo. Esmiuçar o díptico à guisa de sinopse empobreceria a jornada do espectador. O mistério é uma estratégia decisiva nos espetáculos complementares. O subtexto é mais importante do que a nesga de fábula.

O brasileiro decerto encontra um pouco de dificuldade em compreender o rasqueado de uma fala ou outra, porque a língua, espanhola ou alhures, também é macerada conforme o sofrimento e a alegria impressos. Há um travo nostálgico na celebração de uma despedida assimilada como eterno retorno: quem sabe o coração do teatro resida aí. Montar, desmontar. Fazer, desfazer, ensaiar. Fazer e desfazer melhor ainda.

A narrativa golpeia por meio de paisagens da alma, do ambiente e da memória. Apoia-se no estranhamento permanente e no carisma inconcessível transfigurado na presença de cada ator: uma sobrancelha erguida fisga com a mesma intensidade de uma canção a capela. Esses criadores emanam convicção apesar do aparente desalinho. A técnica desaparece. Sobressai uma poética vesga: o campo de recepção infiltrado pelo que é enigma, suspense, interdito, sub-reptício. Não fossem esses bravos atores, a epifania de Suárez jamais se cumpriria.

.:. Texto escrito para o Coletivo de Críticos, uma das ações do segmento Olhares Críticos na MITsp.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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