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Entrevista

O teatro da ausência na ótica de Bob Wilson

24.3.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Lucie Jansch

Robert Wilson não passa mais um ano sem vir ao Brasil. Desde 2012, quando o renomado diretor norte-americano iniciou uma parceria com o Sesc, São Paulo já assistiu a quatro de suas montagens. E o encenador, volta e meia, precisa vir à cidade acertar detalhes de suas novas produções. Na sexta-feira, Wilson esteve por aqui mais uma vez.

Em julho, ele apresenta no palco do Sesc Pinheiros The old woman. O espetáculo, que estreou na Inglaterra em 2013 e já foi visto em Paris, traz como protagonistas o ator Willem Dafoe, que já colaborou com o diretor em ocasiões anteriores, e o bailarino Mikhail Baryshnikov.

Foi a primeira vez que o diretor trabalhou com “Micha” (apelido com o qual ele o chama repetidas vezes durante a entrevista). Um encontro que, aparentemente, afetou muito do processo de criação.

The old woman é uma adaptação da novela de Daniil Kharms, escritor nascido em São Petersburgo. Obscura e marcada pelo absurdo, a obra conta a história de um escritor que não consegue se livrar da imagem de uma velha senhora, ideia que o assombra e inquieta. O stalinismo, contexto em que Kharms criou sua ficção, aparece evocado na estética da obra. Blocos de luz branca sobre fundo negro devem soar como lastros do regime tirânico.

A relação de Wilson com o país promete perdurar. Depois de encenar uma peça com elenco local – A dama do mar -, ele agora planeja uma criação que tenha também uma matriz nacional. Diz ainda não ter definido um tema ou autor. “Mas já sei que quero tratar de algo que seja específico da cultura brasileira.”

Por que você decidiu encenar a obra de Daniil Kharms?
Há muito tempo já tinha conversado com Micha sobre a possibilidade de fazermos algo juntos, com um escritor russo. Quando eu finalmente li essa obra, que me foi indicada por um amigo, descobri que não tinha entendido nada. Então, rapidamente, resolvi fazer. Imaginei que seria um bom material para Micha, como artista. Logo, começamos a trabalhar. Passamos os dois primeiros dias sentados, debruçados sobre o texto. Só que, depois de um tempo, eu não tinha mais o que falar a respeito. Ele ainda não estava habituado ao meu método de trabalho. Mas quando começo a falar apenas do ponto de vista intelectual, eu me perco. Eu precisava começar, fazer alguma coisa. Você aprende a andar, andando, não é?

E como trabalhou com esse texto?
Esse texto poderia ser feito de qualquer jeito. Poderia ser encenado com cinco ou 20 pessoas no palco. Nada está definido. Coloquei dois homens sentados em uma mesa. Meia hora depois comecei a criar uma série de movimentos. Em seguida, coloquei alguém lendo trechos do texto.

Em russo?
Parte em inglês, parte em russo. Mas é assim que fizemos a peça. Primeiramente, os movimentos. Depois, colocamos o texto. Esse é um texto absurdo, não existe um sentido lógico ali. O que eles estão fazendo sentados ao redor de uma mesa? Parece razoável, mas não tem lógica nenhuma. Fiz um workshop em que trabalhei toda a peça em silêncio. Depois criei a luz, cenário, todas essas coisas. Em seguida, repassei toda a obra como se fosse uma áudio-peça, pensada para rádio, e trabalhei apenas os sons. Como o texto é muito abstrato, era uma maneira de me concentrar nele sem estar distraído pelas imagens. Só depois eu coloquei as duas coisas juntas. E apenas aí, nesse encontro, alguma coisa especial aconteceu. Algo que não existe quando as duas partes estão separadas.

Mas essa já é a sua maneira habitual de trabalhar, não é?
Sim. Geralmente separo essas duas partes. Mas, como no começo, quando eu estava lendo, nada estava muito claro para mim, e eu não sabia ao certo o que estava acontecendo, isso funcionou. É uma mentira essa tentativa de fazer muitas conexões.

Bob Wilson encena ‘The old woman’ em SP em julho

E quanto tempo durou o processo de trabalho de vocês?
Me lembro de termos passado juntos três verões. Acho que foram dois anos e meio de trabalho, desde a primeira ideia até tomar a forma final. Quando começa, um diretor não tem a menor ideia do que fazer. Claro que se você pega Gata em teto de zinco quente (de Tennessee Williams), você já tem uma imagem em mente. Mas nesse texto era muito difícil saber qual era exatamente a situação a ser trabalhada.

De que maneira você lidou com essas situações de absurdo ou surrealismo que a obra propunha?
Tive que lidar com a ausência. Eu nunca nem sequer contei isso aos atores, mas para mim a peça era sobre o autor. As muitas personalidades dele que poderiam ser combinadas. Ambos os atores, portanto, podem ser a velha mulher ou ser um único homem. Eles também podem trocar de posição. O espetáculo trata de dualidade, se organiza segundo essa ideia. Enquanto um fala suave, outro é mais enfático. Um mais rápido, outro menos. Um mais extrovertido, o segundo mais interiorizado. Essa foi a ideia. Não se está ilustrando o texto, mas acompanhando o texto com uma imagem – que pode ser contrária ao que está dito.

Muitos autores apontam uma semelhança entre Kharms e Samuel Beckett. O senhor, que trabalhou recentemente com Beckett, vê algum ponto de contato entre eles?
Eu me identifico com várias das predileções que Beckett tinha: sua preferência por filmes mudos, sua aversão ao naturalismo e ao psicologismo, a valorização do artificial. Nos filmes de Charles Chaplin tudo é marcado, parece dança. Ainda que Kharms também lide com cores escuras, com um universo obscuro, Beckett possui um mundo literário diferente, muito próprio.

>> Quem é:
Nascido em 1941, no Texas (EUA), Robert Wilson tornou-se um dos mais importantes artistas do século 20. Seus espetáculos são internacionalmente reconhecidos pela carga de vanguarda e pela estética que inauguraram. Além de encenador, é coreógrafo, escultor, pintor e designer. Esteve no Brasil pela primeira vez em 1974, quando apresentou The life and times of David Clark, no Teatro Municipal de São Paulo.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C4, em 16/3/2014.

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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