Artigo
28.3.2014 | por Fernando Marques
Foto de capa: Humberto Araujo / Clix - Festival de Teatro de Curitiba
No poema Eterno, o modernista Carlos Drummond garante: “E como ficou chato ser moderno./ Agora serei eterno”. Podemos parafrasear o dito e registrar: nada mais antigo que o moderno, agora queremos ser pós-modernos. E, se o assunto for teatro, seremos então pós-dramáticos. Mas correríamos o risco de jogar fora o bebê com a água do banho ao entender o período pós-dramático, iniciado nos anos 1970, como se fosse de ruptura completa com a história do teatro – desde os gregos.
Segundo os teóricos pós-dramáticos, já não há enredo, já não se podem compor tramas, tendo minguado o desejo de ordenar o real sob a forma de histórias inventadas. Na falta de acordo sobre o que seja o mundo, como representá-lo? No mesmo sentido, já não haverá personagem, porque identidade e coerência colidem com o ceticismo contemporâneo, para o qual a unidade psicológica não dura um verão, sem falar no caos midiático. É mesmo? Alguns veem as coisas de outro modo.
A obra do dramaturgo romeno Matéi Visniec, 58 anos, radicado na França desde 1987, constitui bom sinal de que as regras do programa pós-dramático, se levadas demasiado a sério, podem tornar-se tendenciosas ou retóricas. Com 15 peças (em 13 volumes) lançadas no país desde o ano passado [2012], Visniec continua a acreditar em personagens minimamente coerentes, destinados a espelhar seres humanos, e em histórias com início e fim (sempre convencional e provisório, claro). Dessa forma, descarta, ao menos em parte, o abecedário pós-dramático.
Das várias peças agora acessíveis em português, comento três, todas compostas à base de paráfrase, escritas a partir da obra de dramaturgos fundamentais do século passado. A máquina Tchékhov visita, como o título promete, peças e personagens do russo Anton Tchékhov (1860-1904), talvez o primeiro autor teatral decididamente moderno. Em suas peças, o realismo otimista do século XIX começa a vacilar, a se perguntar se tinha mesmo o direito de se considerar representante fidedigno da vida real. Tchékhov não dispensou, porém, a expectativa generosa de mundo solidário.
Outra peça, ou simples esquete, chama-se O último Godot, homenagem ao irlandês Samuel Beckett (1906-1989). O título aponta para uma resposta bem-humorada a Esperando Godot, peça de 1953 que ajudou a dividir águas no século XX. O texto de Beckett recusa o personagem psicologicamente consequente e o enredo retilíneo – instrumentos pelos quais o teatro costuma (ou costumava) reproduzir os jogos de causa e efeito, ou de projeto e resultado, originários da experiência viva [a foto no alto deste artigo traz Gilberto Gawronski e Guida Vianna em O último Godot, dentro do projeto 2 x Matei, que estreou no Festival de Curitiba].
A mais ambiciosa das três obras intitula-se Da sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres. Aqui o dramaturgo acena, com ênfase, para seu conterrâneo Eugène Ionesco (1909-1994), aproveitando figuras e situações de A cantora careca, A lição, As cadeiras (que estrearam entre 1950 e 1952) e O rinoceronte (1959), talvez os textos mais conhecidos de Ionesco.
A cantora careca vale-se do disparate para zombar das atitudes burguesas. Os brinquedos verbais dominam a peça, somados ao descompasso entre palavra e gesto, intenção e ato. A lição, parábola sobre situações opressivas, As cadeiras, peça em torno dos duvidosos sentidos atribuídos à vida, e o alegórico Rinoceronte também auxiliam Visniec a ridicularizar a ditadura de tipo stalinista que vigorou na Romênia depois da Segunda Guerra. Ao criticar o antigo regime em seu país, ele denuncia o desvario moral e a indigência intelectual de todas as ditaduras. Situações realistas e climas surreais reúnem-se em Da sensação de elasticidade, que tem como protagonista o desengonçado e simpático Poeta.
A prática da paráfrase – processo frequente em nossos tempos repletos de história e de informação – assinala o propósito de ligar o passado próximo ao presente e ao futuro. Vale tentar averiguar o modo pelo qual o dramaturgo dá forma à pauta que se propôs.
A figura do médico e escritor Anton Tchékhov, feita personagem, aparece íntegra com sua teimosia em apoiar o próximo e em lhe retratar as mazelas – de maneira terna ou crua, mas sempre eficaz. O autor romeno acerta ao ressaltar o fato de que, em Tchékhov, médico e doente conviveram desde sempre, o que o humaniza: “Toda a minha infância estive doente… Apanhava de tudo… Tosse, hemorroidas, peritonites, enxaquecas, problemas cardíacos, afecção da vista, corizas… Com 24 anos comecei a cuspir sangue”. Tchékhov dialoga com personagens retirados de suas próprias peças, entre elas As três irmãs e O jardim das cerejeiras. Visniec prolonga trajetórias apenas esboçadas naqueles textos e imagina desfechos alternativos.
A breve e leve O último Godot não tem a dimensão das outras obras, na extensão ou no alcance. Visniec promove o encontro de Beckett com o personagem que, em Esperando Godot, jamais aparece, embora copiosamente aguardado. O clima acha-se próximo do farsesco, portanto semelhante ao do Godot beckettiano. Outra homenagem, esta à arte do teatro, se insinua ao final.
A peça Da sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres, em contraste, mostra-se ampla e cheia de curvas, desvios, idas e vindas. Assim como a figura do médico-escritor assume a tarefa de ligar as cenas em A máquina Tchékhov, aqui é o Poeta quem desempenha esse papel, numa história de base realista, mas com passagens de sonho, suprarrealistas, algumas dominadas pelo diálogo absurdo à maneira de Ionesco. Os quadros ligam-se não tanto segundo relações de causa e efeito, como nos esquemas dramáticos cerrados; antes ocorrem dispersos, sendo costurados pela presença dos personagens mais constantes – além do Poeta, há, por exemplo, o sinistro e paranoico Diretor da Prisão.
Autores como Visniec, o francês Koltès e o espanhol Juan Mayorga primam por manejar conquistas dramáticas e pós-dramáticas sem diluir por inteiro o mundo exterior, cuja existência eles insistem em reconhecer e em procurar refletir, ainda que não de maneira direta. São autores avessos à escrita linear; por outro lado, tampouco aderem à completa ruptura dos laços entre vida e arte, modelo e cópia, quebra que implica a recusa de qualquer discurso imitativo, referencial (os espetáculos brilhantemente afásicos de Gerald Thomas, nos anos 1990, oferecem exemplos dessa última corrente).
O alemão Heiner Müller, escritor associado ao projeto pós-dramático, foi capaz de frase inspiradíssima quando disse que “a tarefa da arte é tornar a realidade impossível”. Em troca, pronunciou também opinião de torcedor do Bonsucesso: “Não acredito que uma história que tenha ‘pé e cabeça’ (a fábula no sentido clássico) ainda seja fiel à realidade”. Ora, de que realidade estamos a falar, afinal?
De duas realidades, pelo menos; ou de duas ideias de mundo. Não se trata aqui de hierarquizá-las. Vejamos: se tomarmos a repartição dos fenômenos da cultura segundo a entende Georg Lukács (sem as prevenções de Lukács), teremos duas séries básicas de eventos, com as atitudes correspondentes. A atitude racionalista crê na inteligência e na ação dos seres humanos para a solução dos problemas da espécie; é, portanto, politicamente otimista. Já a de tipo irracionalista descrê da capacidade dos homens para a resolução dos conflitos, mostrando-se pessimista política e existencialmente.
Autores como Anton Tchékhov e Bertolt Brecht contaram entre os racionalistas, tendo pertencido à turma dos esperançosos (embora não ingênuos). De outro lado, Ionesco, Beckett, Nelson Rodrigues estiveram entre os irracionalistas, artistas céticos quanto às chances de remissão da espécie crédula e trágica que somos.
Visniec, mesmo ao se valer de Ionesco, tende a não acompanhar os desdobramentos irracionalistas que resultaram no hermetismo pós-dramático. Haveria ressalvas a fazer a alguns aspectos de suas peças, como, aqui ou ali, a utilização um pouco literal das ideias e processos que parafraseia. Mas, em lugar de emitir juízos sobre seus bons textos, prefiro compreendê-los conforme a tendência contemporânea que parecem refletir. Para o dramaturgo, teatro e literatura destinam-se a algo mais do que apenas expressar perplexidades.
.:. Publicado originalmente no Correio Braziliense, suplemento Pensar, em 2/3/2013.
Serviço:
A máquina Tchékhov
Tradução: Roberto Mallet. 112 pág. É Realizações Editora.
O último Godot
Tradução: Roberto Mallet. 40 pág. É Realizações Editora.
Da sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres
Tradução: Luiza Jatobá. 168 pág. É Realizações Editora.
.:. Lei mais sobre as peças do autor lançadas pela É Realizações, aqui.
Trechos de peças de Matéi Visniec
Trecho 1
De A máquina Tchékhov (2001). Tradução: Roberto Mallet.
TCHÉKHOV: Se quiser ser escritor, escritor no sentido profundo da palavra, mantenha sua independência a qualquer preço. Seu dever é colocar questões, não respondê-las. Evite, em sua obra, os sermões disfarçados. Não tente transmitir uma mensagem. O escritor que quer transmitir uma mensagem a qualquer preço desfigura sua obra. Mostre a vida sem tentar provar nada. É o escritor que deve estar a serviço da personagem e não a personagem a serviço do escritor. (…) Quanto mais desaparecer por trás de sua personagem, mais ela viverá… E mais chances de viver ela terá, pois será uma personagem verdadeira e poderá sobreviver a você. Porque a literatura (…) é também uma corrida contra a morte. Quanto mais conseguir criar verdadeira comoção, mais a morte se distanciará… Se quiser contar uma história, coloque-se desde o início na posição de testemunha imparcial. Assim terá todas as chances de conseguir uma narrativa comovente.
Trechos 2 e 3
De Da sensação de elasticidade quando se marcha sobre cadáveres (2009). Tradução: Luiza Jatobá.
O POETA: Um cidadão soviético compra vários selos com a efígie de Stálin. Depois de um momento, ele volta furioso ao balcão do cigarro e diz: “É um roubo, é inadmissível, esses selos não colam”. E o vendedor responde: “Você não cuspiu do lado certo, camarada”.
VOZ 3: Ah, essa é boa. Isso nos faz bem. Você conhece mais algumas?
VOZ 2: Ela é boa mas não é nova. Em 1938 ela já circulava na Alemanha, mas era da efígie de Hitler que se tratava. E depois de 1950 ela também circulou na Espanha, onde eram os selos com a efígie de Franco que não colavam.
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O POETA: Isso se passa na República Democrática da Alemanha. A Stasi [polícia política] quer de todo jeito pegar quem está inventando piadas. Depois de mil perseguições, escutas, prisões e outras coisas mais, a polícia descobre que todas as piadas vêm de uma só pessoa, um velhinho de oitenta anos. Então ele é preso, mas como o tipo é de verdade muito idoso, o interrogatório é feito com delicadeza. E o chefe da polícia lhe pergunta gentilmente por que ele inventa piadas. E o velho responde: “Muito simples, eu não posso parar. Desde a época do imperador que eu inventava, continuei no tempo da república e ainda mais no tempo de Hitler”. “Mas, hoje”, lhe diz então o comissário, “hoje é diferente, é o povo que detém o poder e nós construímos o mundo mais justo e mais maravilhoso que jamais existiu.” E o velhinho responde: “Essa aí é minha, também…”.
Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.