Crítica
O espetáculo que abriu a programação da MIT, Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, de Romeo Castellucci, oferece uma ampla gama de chaves de leitura. Elaborar um texto crítico propositivo sobre esta obra – em poucas horas e em um espaço reduzido – demanda uma escolha radical. Diante da complexa trama de possibilidades que se abre diante do espectador, a proposta deste breve exercício de reflexão é puxar um único fio e apontar um caminho possível de reflexão sobre a peça, sem a intenção de esgotá-lo. Trato feito, puxamos o fio: pensar a presença do rosto de Cristo no fundo do palco como a construção de uma imagem dialética e como o espetáculo opera, com isso, uma proposição ética que nos fisga para dentro da obra. Por imagem dialética, entendo o conceito elaborado por Georges Didi-Huberman a partir de Walter Benjamim em livros como O que vemos, o que nos olha e Ouvrir Vénus. O que nos convida a trazer à tona um conceito para esta tentativa de diálogo com a obra é o próprio título, uma proposição teórica estranhamente elaborada. Pelo título, a peça nos diz que o que está em jogo não é uma trama nem um tema, mas um conceito. Assim, nos propomos a jogar com cartas do mesmo baralho.
Em poucas palavras, podemos dizer que uma imagem pode ser pensada como dialética quando há nela algo que se dá a ver diante de nós ao mesmo tempo que nos escapa, um movimento incessante de ausência e presença que abre a imagem e faz com que ela se desdobre em constelações de imagens. O efeito da imagem dialética é a sensação de que ela nos olha – uma ideia presente em diversas declarações de Castellucci. Uma imagem dialética é uma imagem aurática, sendo o conceito de aura um aspecto importante da reflexão sobre as artes desde o texto de Benjamim A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. O rosto de Cristo, como pintado por Antonello Della Messina, projetado e ampliado no fundo do palco, articulado em simultaneidade com a cena do filho que limpa diligentemente as fezes do pai que sofre de incontinência, me parece ser uma materialização precisa da imagem dialética. Afinal, a imagem de Cristo é pura aura: é sempre presença e ausência ao mesmo tempo, um homem que também é deus, um corpo ressuscitado, um corpo que se faz hóstia, um corpo-conceito. A sua representação visual é, para os cristãos de fé, como o próprio Cristo – daí a rejeição visceral que a peça provoca nos mais fervorosos. O que o espetáculo opera com a representação desse rosto é algo que dispara o vislumbre da aura: o “fato” de que aquela imagem nos olha, a eficácia do seu olhar. O imenso rosto de Cristo no fundo da cena nos oferece uma representação literal desse efeito estético. Se somos céticos na lida com a arte, vemos apenas a projeção de uma pintura como artefato de cenografia, e assim nós apenas olhamos. Mas se nosso olhar está aberto para as imagens de arte na sua intensa complexidade, vemos a imagem do filho de deus – e essa imagem nos olha.
A presença do olhar do Cristo é a presença assombrada de um juízo constante. O que eu tenho a dizer sobre o conceito de rosto no filho de deus é que ele nos olha. Ao dar a ver a aura na imagem desse rosto, Castellucci alimenta a força para questioná-lo e, com um golpe, infiltra a negação no cerne da afirmação do seu poder sobre nós. O “não” que aparece, como um fantasma, na frase “o senhor (não) é o meu pastor” surge como contraponto desconcertante àqueles piedosos olhos de Cristo, com uma força plástica singular, e nos olha como se nos perguntasse, expondo uma ferida histórica, de que maneira aquela frase faz sentido para nós.
.:. Texto escrito para o Coletivo de Críticos, uma das ações do segmento Olhares Críticos na MITsp.