Menu

Crítica

Sobre (ou a partir de) ‘Fogo-fátuo’

20.3.2014  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Fernando Stankuns

A inquietação do personagem do Escritor, em Fogo-fátuo, texto de Samir Yazbek e Helio Cicero, interpretado pelos autores, não se refere apenas a voltar a produzir – uma crise o paralisa há algum tempo. Liga-se também, naturalmente, a desejar escrever obras que o justifiquem e que lhe permitam sobreviver à morte, ao tempo escasso, aos limites do corpo. Se não fosse assim, não haveria por que solicitar uma entrevista a Mefisto, o demônio, sempre ávido por almas íntegras.

O argumento de Fogo-fátuo é, portanto, simples e eficaz: um profissional das palavras, tendo perdido o dom de dominá-las, apela para o diabo, esse mito de origem medieval que nos assombrava o catecismo, para voltar a escrever, a se expressar, enfim. A situação, já explorada por Marlowe, Goethe, Pessoa, retorna para figurar não só a crise desse Escritor, mas também a perene e compulsória crise do teatro, sobretudo em tempos de incessante inovação tecnológica, com técnicas que brotam a cada ano, das quais o palco pode incorporar apenas algumas. Tendo visto Fogo-fátuo, confirma-se a convicção de que o teatro, afinal, sequer precisa delas.

Vale notar que, se as queixas nesse plano, digamos, mundano ou prosaico são feitas pelo Escritor com certa ênfase, seu interlocutor vai relativizá-las e criticá-las. É fato que o teatro dos últimos anos se deixou dominar pelos mecanismos de mercado, quase sempre empobrecedores – mas algum dia foi diferente? No século XIX, alguns reclamavam de que se fosse assistir à ópera não propriamente pelo espetáculo, mas para ver os demais espectadores e se fazer ver por eles.

Assim, ainda que o Escritor tenha parte da razão nas suas queixas, Mefisto a certa altura lhe recorda que, diante do espetáculo trágico que se promove todos os dias, não de ficção, mas de fato, “sua pequena revolta não quer dizer nada”. E acrescenta: “Divirta-se enquanto pode! E pare com esse discurso vazio, de frases feitas, repetição da repetição!”. Aqui já estamos no plano dos assassinatos e chacinas, muito além dos maus costumes de consumo.

Não que Mefisto ignore ou subestime o circo de horrores. Ele apenas afirma que os responsáveis por ele são os seres humanos com seus pendores corruptos, seus apetites agressivos, sua consciência estúpida ou nula. Somos “uns sanguinários, os verdadeiros vampiros”, acusa.

Samir Yazbek (Escritor) e Helio Cicero (Mefisto)Sem créditos

Helio Cicero (Mefisto) e Samir Yazbek (Escritor)

Sem dúvida: basta lembrar o recentíssimo massacre na Síria, com centenas de mortos por armas químicas… Só agora as chamadas potências ocidentais resolvem acordar e ameaçam interferir (para gerar mais mortes). Importa mesmo que tenham sido armas químicas? Aquelas crianças – muitas estavam entre as vítimas – não estariam menos mortas se as armas não fossem químicas. No mesmo instante, o governo brasileiro se irrita e se descabela com o episódio do senador boliviano que chegou ao país sem autorização, porém se omite quanto ao problema sírio, mil vezes – foram mil mortos – mais importante.

O leitor de espírito objetivo releve, se puder, essa digressão; a culpa é do espetáculo, mais precisamente de Mefisto, que usa a boa retórica para nos lembrar do que vemos todo dia, mas já não conseguimos sentir, menos ainda sofrer.

Se o teatro é o lugar onde “os grandes temas da humanidade são discutidos”, e por isso Mefisto propôs que o encontro com o Escritor se desse numa sala de espetáculo, é curioso notar que a denúncia ou, quando menos, a referência ao que é humano e desumano pode ser ultrapassada; ou melhor, pode ser levada ainda mais longe.

O que se dá quando entramos numa atmosfera de poesia que incorpora aqueles problemas todos e os supera sem descartá-los, sem descartá-los de modo algum. Quando, por um truque de ficção, vemos o próprio Mefisto confessar a inveja que sente de nós, mortais. “Não a inveja de como vocês vivem, mas de como deveriam viver”, diz ele. O diabo lamenta: “Como seria maravilhoso se eu pudesse… Tomar um café. Sentir o frio arder no rosto. Depois desejar o verão. Fazer qualquer coisa que seja efêmera. Porque só o efêmero é digno de ser amado”.

Só o que é humano é digno de ser amado. Acima de nós, não há deus algum, somente nuvens – creio ou descreio eu, e nisso me afasto de uma sugestão do espetáculo, aliás bela. Nas palavras do Escritor: “Um livro, dependendo de quem escreve, ainda pode remeter a todos os outros grandes livros que já foram escritos um dia, como se o autor fosse um só. (Apontando para o céu) Aquele, que o senhor conhece tão bem!”.

Mefisto inveja a vida humana justamente pelo que ela tem de passageiro e frágil. Não lhe tiro a razão. Mudando um pouco o foco, pode-se perguntar: onde está o grande autor quando se assassinam as suas criaturas? Falo da vida que arrancaram daqueles garotos e garotas na Síria há poucos dias, ato não apenas hediondo, mas politicamente burro, já que as crianças mortas não ofereciam perigo a ninguém, nem a governo, nem a rebeldes. Vocês relevem.

PS: Sim, as crianças em meio às vítimas talvez não tenham sido visadas pelos agressores. Eles apenas não se importam com elas.

.:. Artigo originalmente publicado no site da 14ª edição do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, em agosto de 2013.

.:. Leia comentário de Valmir Santos a respeito de Fogo-fátuo publicado no Teatrojornal – Leituras de cena, aqui.

Ficha técnica:
Fogo-fátuo esteve em cartaz no CCBB de Brasília de 23 a 25/8/2013, integrando o evento Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília.
Espetáculo da Companhia Teatral Arnesto nos Convidou (São Paulo).
Texto: Samir Yazbek e Helio Cicero. Com os autores.
Direção: Antônio Januzelli.
Cenografia: Laura Carone
Figurino: Telumi Hellen
Trilha sonora original: Marcello Amalfi
Iluminação: Osvaldo Gazotti
Operação de luz: Osvaldo Gazotti
Operação de som e montagem de palco: Vinícius Andrade
Programação visual: Diego Spino
Vídeo: Daniel Lopes
Assistência de produção: Patricia Borba e Henrique Alves
Produção executiva: Marcela Sanchez Cappabianco
Produção e administração: Silvia Marcondes Machado/Mecenato Moderno

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

Relacionados