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Artigo

Pela reintegração de política e teatro

11.4.2014  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Cedoc/Funarte

A jornalista Ivana Bentes falou certa vez em “cosmética da fome” a propósito do filme Cidade de deus. Embora se entendam os motivos para a crítica a obras de arte que, ao pretender denunciar males sociais, terminam por vampirizá-los, seria uma pena que se jogasse fora o bebê com a água do banho. Quer dizer: seria empobrecedor decretar que a arte produzida por autores de classe média está fadada à inautenticidade ao falar sobre esses males, que continuam a assombrar a sociedade. Assim como se dá justamente agora, no Rio de Janeiro, com a “reintegração de posse” de terreno e prédio da empresa Oi, ocupados por famílias que berram por moradia enquanto são atacadas pela polícia.

Escrever uma peça teatral, um roteiro cinematográfico, um poema, uma canção a partir de um evento tão dramático quanto esse implicaria, sempre e necessariamente, praticar a tal cosmética da fome? Ou, ao compor e ao comprar obras dessa espécie, estaríamos antes adotando uma ética da fome, solidária com os que sofrem carências de todo tipo – de alimento, moradia, saúde, educação, emprego, salário e liberdade? Sim, há óbvia falta de liberdade também: basta ver como são tratados os moradores dos morros supostamente pacificados, no Rio, ou os moradores de rua, em São Paulo, para constatar que nossos maus costumes políticos permanecem acorrentados ao século XIX. Para os governos, pobre que não conhece o seu lugar tem é de apanhar na cara.

Falando em primeira pessoa, lembro que escrevi uma peça, lançada há menos de seis anos em livro e disco, que tem por tema um movimento de gente sem-teto. Um amigo a leu e depois a elogiou em conversa, mas considerou que o texto estaria melhor situado se houvesse sido escrito “nos anos 60”. Uma jornalista teatral também o esnobou, por motivos similares – não se fazem mais peças como essa, parecia dizer. Os autores do prefácio e da apresentação a defenderam, como era natural que o fizessem. A prefaciadora lembrou a década de 1960; o autor da orelha invocou Büchner e Brecht.

Pois é: os movimentos por moradia, nas grandes cidades brasileiras, só se multiplicaram nesses seis anos.

Hoje, o teatro – talvez por temer reincidir na tal cosmética, pela qual se estetiza a dor alheia sem minorá-la de fato – parece ter esquecido a possibilidade de elaborar uma ética ou, como queria Glauber Rocha, uma estética da fome (expressão que, ressalve-se, remete antes à precariedade dos recursos materiais na produção das obras). O que havia nas décadas de 1960 e 70 não era apenas a utopia ingênua de uma revolução igualitária e purificadora, mas o projeto legítimo de associação política de classe média e povo, ou da classe média ao povo, às classes trabalhadoras. Esse projeto foi derrotado, mas deixou algo para a nossa maneira de votar; para a redistribuição de renda operada nos últimos anos; para as manifestações de junho ou, ainda, para os prédios incendiados hoje, dia 11 de abril, por ocupantes acuados pela polícia militar, no Rio.

De que maneira se pode pensar em reatar laços ou em criar novos laços políticos entre camadas distintas da sociedade? Camadas diversas, mas que alimentam ideais semelhantes – em resumo, o desejo de estabelecer direitos idênticos para todos. O artista de classe média estará condenado a falar apenas do próprio umbigo, sem ligá-lo às circunstâncias, sem reparar no umbigo alheio?

O que não faz mais nenhum sentido, e isso há tempos, é a ilusão de superioridade intelectual, com o decorrente dirigismo político, que viciou o comportamento das esquerdas nas décadas de 1960 e 70. Didatismo e dirigismo que, já em 1979, uma peça como O rei de Ramos superava ao denunciar, com sarcasmo, sem qualquer ingenuidade, o capitalismo que hoje se chama global (a palavra “globalização” não existia nos anos 1970, mas a peça intuiu o seu significado já naquela hora). Sistema que se poderia chamar também de capitalismo de cartel, agora universal.

Uma peça de teatro poderá ser péssima ou nula, mas não o será por falar de gente sem-teto, em confronto com políticos mentirosos. Os que duvidam da pertinência de obras pautadas numa visão solidária é que talvez habitem noutro país, noutro planeta.

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

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