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Reportagem

Em algum lugar do passado…

10.6.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Marcelo Pacífico

Se um estrangeiro examinasse o que está em cartaz em São Paulo, hoje, teria a impressão de que o teatro brasileiro acabou de ser inventado. Ou, ao menos, de que tudo o que se havia produzido antes não tem o menor interesse. A exceção de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos – regularmente revisitados – o que se encontra nos palcos são criações de autores contemporâneos.

Um levantamento da cena paulistana atual mostra que, dos cerca de cem espetáculos disponíveis, mais de 60% foram escritos por dramaturgos brasileiros. Dentre eles, porém, é mínima a quantidade de textos que datam dos séculos 19 e 20. “O que existem são montagens de exceção”, diagnostica Eduardo Tolentino de Araújo, diretor do grupo Tapa. “Um dos maiores problemas da dramaturgia brasileira é que ela foi pouco encenada e pouco vista.”

O repertório que jaz desconhecido é imenso. Autor de Esplendor da comédia e o esboço das ideias, o pesquisador Sergio Fonta se interessou em dar voz a “todos esses nomes que estavam em silêncio”. “Percebi que havia uma lacuna. A gente estuda Martins Pena, Artur Azevedo [a foto no alto é uma cena de ‘As viúvas’, do grupo Tapa, com três comédias curtas deste autor maranhense]. Depois pula direto para o Nelson Rodrigues. Onde está essa gente toda que trabalhou nessa época?”, questiona Fonta.

No livro, ele levanta alguns desses autores e suas obras. Gente como Viriato Correa, Álvaro Moreyra, Oduvaldo Vianna. “Hoje, só lembramos do Vianinha. Mas seu pai foi um dos homens mais importantes do teatro brasileiro em certo período. Escreveu peças como Amor, um primor de estudo sobre o ciúme feminino, que ninguém conhece.”

Considerar que o teatro brasileiro só começa após a estreia de Vestido de noiva “é negar toda a tradição cômica do teatro brasileiro”, considera João Roberto Faria, professor da USP e um dos mais profícuos pesquisadores das artes cênicas no País. Para ele, a ideia de que nada de relevante aconteceu antes de Nelson Rodrigues é equivocada. “Nos anos 1940, o aparecimento de Nelson Rodrigues e o trabalho dos encenadores estrangeiros que se radicaram no Brasil deram outro rumo ao nosso teatro, mas isso não apagou em absoluto a nossa história.”

Não são apenas os autores dramáticos do início do século que estão ausentes dos palcos. Escritores que produziram entre os anos 1950 e 80 tampouco despertam o interesse dos grupos e companhias atuais. No teatro dito experimental vigoram os processos colaborativos, focados na criação de uma dramaturgia própria, que dê conta de conflitos e questões contemporâneas.

Já a parcela da cena de feições mais tradicionais prefere voltar-se a textos estrangeiros ou buscar novos autores cômicos brasileiros. “O teatro hoje está enriquecido, com bons dramaturgos jovens, mas não é preciso se desligar do que já existe”, considera Sergio Fonta. “Existe uma pressa natural de todos nós, uma vontade de ver o novo que acaba deixando tudo para trás.”

João das Neves dirigiu neste ano obra de Vianinha

Entre esses criadores obscurecidos pelo tempo estão nomes como João das Neves, Chico de Assis, Consuelo de Castro, José Vicente. Na opinião dos especialistas ouvidos pelo Estado, o exemplo mais eloquente desse esquecimento por parte da classe teatral é Jorge Andrade. “É preciso vê-lo no mesmo patamar do Nelson. Trata-se de um dos principais autores do teatro brasileiro e, apesar de ter produzido pouco, tem três peças importantíssimas”, considera Sergio de Carvalho, diretor da Cia. do Latão e professor de dramaturgia e crítica na USP.

“Jorge Andrade carece de encenações”, pontua Eduardo Tolentino. “Dentro de um repertório curto, de 12 peças, ele tem ao menos quatro inéditas. E, entre as que foram encenadas, muitas mereceram apenas uma montagem. Precisamos lembrar que o teatro não é só literatura escrita. Tem o que está por trás dessa literatura, a cada montagem é possível descobrir algo novo.” Cada uma dessas releituras, lembra, acrescentou alguma coisa aos títulos rodriguianos. A grande maioria dos autores, contudo, não teve o mesmo destino.

Nelson foi afortunado por ter contado, desde o início, com grandes diretores. Ziembinski deu forma revolucionária às suas ideias. Mais adiante, Antunes Filho sublinhou, em diversos espetáculos, as qualidades de suas criações. A cuidadosa recepção crítica dispensada ao autor de Toda nudez será castigada também entra nessa equação. Sábato Magaldi dedicou-se a evidenciar as qualidades e o caráter inovador de sua obra.

Não é simples entender o desinteresse dos criadores nacionais pela própria história. São inúmeras as razões para esse “esquecimento” que paira sobre dezenas de escritores que obtiveram sucesso e reconhecimento na época em que viveram. “O brasileiro não tem o hábito de ler peças teatrais”, observa João Roberto Faria. “O ensino público está falido, se lê pouco nas escolas e, nos cursos de formação de atores, os alunos acham que tudo começa com Beckett e não têm interesse em conhecer nosso passado teatral.”

Cabe considerar, ressalva Sergio Fonta, que esse não é um fenômeno exclusivamente nacional. “Vivemos essa linguagem do videoclipe, fragmentária, que vai deixando tudo para trás. E isso não é só no Brasil.”

As novas práticas dentro das salas de ensaio também contribuem para o processo. “Os intérpretes, hoje, valorizam o trabalho performático, que os afasta da interpretação de um personagem ficcional, já dado de antemão”, argumenta Faria. “Tenho a impressão de que acompanhamos aqui uma tendência geral.”

Mas, no país, uma série de acontecimentos históricos também contribuiu para aprofundar esse descaso com o que já passou: a cisão na produção teatral provocada pela ditadura militar produziu efeitos ainda hoje sentidos. “Uma geração inteira de dramaturgos parou de escrever. Foram exilados, mortos, migraram para a TV onde tinham campo de trabalho”, recorda Sérgio de Carvalho.

“Muito recente e muito precário, o teatro brasileiro foi sempre marcado por interrupções”, opina Eduardo Tolentino. “E, a cada uma dessas interrupções tratamos de jogar fora tudo o que veio antes.”

Talvez, seja o caso de lembrar o que esses “velhos” artistas, que trancamos nas gavetas, haviam nos ensinado. No Rasga coração de Vianinha ou no Eles não usam black-tie, de Guarnieri, já estava dito: “Nem sempre o novo é revolucionário, nem sempre o velho é conservador”.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C1, em 9/6/2014.

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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