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Reportagem

Latão em revista

23.7.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Sérgio de Carvalho

Um dos mais longevos e profícuos grupos do teatro de São Paulo, a Cia. do Latão abre nesta quarta-feira, 23, uma mostra de seu repertório mais recente. Na Oficina Cultural Oswald de Andrade, serão apresentados O patrão cordial – última criação do diretor Sérgio de Carvalho – , Ópera dos vivos e Círculo de giz caucasiano. “Apresentar esses trabalhos em conjunto marca o fechamento de um ciclo de trabalho. Talvez o mais bonito da história do Latão”, diz Carvalho.

Criados em diferentes momentos, os títulos também são exemplares da diversidade criativa do coletivo, que se apoia ora em textos clássicos, ora em uma dramaturgia própria. Círculo de giz caucasiano é um dos maiores clássicos de Bertolt Brecht. Já Ópera dos vivos marca um grandioso projeto autoral, que une uma peça, um show, um filme e um programa de TV, tomando como premissa os efeitos Sda ditadura sobre a produção cultural brasileira.

Tantas particularidades não devem inibir, porém, o espectador de encontrar pontos de contato entre essas obras. Além de evidenciar as premissas que conduzem o trabalho do Latão: seja qual for o universo com o qual se está lidando, a crítica às práticas e aos mitos forjados pelo sistema capitalista permanece uma constante.

Ambientado no Brasil dos anos 70, O patrão cordial [Ney Piacentini na foto acima] vem discutir as contradições da “modernização” no País. Na montagem, que cumpre temporada até o dia 9, o diretor empreendeu uma mescla entre o argumento de um texto de Brecht, O senhor Puntila e seu criado Matti, e um dos tratados máximos da historiografia nacional: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.

Na adaptação, o empregado Matti se tornou o motorista Vitor. Já o senhor Puntila surge como Cornélio, fazendeiro que mantém um relacionamento disfuncional com aqueles que o servem, variando em função de sua dependência alcoólica: é afetuoso e dócil quando embriagado. Mas, quando sóbrio, porta-se de maneira impiedosa. Argumento que se presta, à perfeição, para debater as ideias de Buarque de Holanda sobre as particularidades da formação brasileira, contexto em que o privado invariavelmente se sobrepõe ao público.

Cena da brechtiana ‘O círculo de giz caucasiano’ (2006)

A partir do dia 14, será a vez de O círculo de giz caucasiano, criação de 2006, voltar ao cartaz. Brechtiana desde sua fundação, em 1996, a companhia sinalizava um retorno às origens com esse trabalho. Mas o fazia de forma diversa. Sem buscar limar as emoções, como geralmente acontece nas encenações do autor alemão. “Não é uma peça fria, pelo contrário”, diz o diretor.

Ópera dos vivos, que estreou em 2010, encerra a programação. Trata-se da mais completa criação do grupo, tanto pela combinação de recursos de diferentes linguagens artísticas quanto por sua dramaturgia. “É certamente nosso trabalho mais complexo. A peça já é, em si, um repertório.”

Por conta de suas dificuldades de realização, o espetáculo deve ser o que terá menor número de apresentações. Poderá ser visto apenas entre os dias 3 e 6/9. Definido pelo criador como um estudo teatral em quatro atos, Ópera dos vivos abarca códigos próprios de outras formas para além do teatro, como a televisão e a música popular, para discutir a produção artística no Brasil, no momento do golpe militar – que é também o do fortalecimento do que convencionamos chamar de indústria cultural. Outro dado que fica aparente no título é a aproximação do grupo com a linguagem do audiovisual.

Foi o desejo de documentar o trabalho do grupo, e também de levá-lo a outros suportes, o que motivou em boa medida a realização dessa mostra de repertório. As peças foram remontadas não apenas para retornar ao palco, mas para serem objeto de filmagem. “É um trabalho importante não só pelo caráter efêmero intrínseco ao teatro, mas porque aquilo que vem sendo gerado dessa documentação – livros, filmes, discos – tem motivado novas criações e ajudado a formar pessoas de outros grupos”, considera Carvalho.

O desejo de atuar no campo formativo deve se manifestar também em outras duas atividades da programação que ocupa a Oswald de Andrade. Entre os dias 9 e 11/9, a companhia promove uma oficina de direção de atores e o Seminário Internacional Teatro e Sociedade. Os palestrantes ainda não foram anunciados, mas as inscrições devem ser abertas ainda nesta semana.

Cena de ‘Ópera dos vivos’ (2010), dividida em 4 atos

Trajetória

Ensaio sobre Danton (1996)
Grupo se lança com espetáculo baseado na obra de Georg Büchner e já deixa evidente sua filiação ao teatro épico

O nome do sujeito (1998)
Primeiro espetáculo do grupo com dramaturgia própria, baseado na obra de Gilberto Freyre

Comédia do trabalho (2000)
Obra de viés cômico que investigava as relações e contradições do mundo do trabalho

Auto dos bons tratos (2002)
Mantinha apego ao teatro épico de Bertolt Brecht, mas lançava olhar para conflitos próprios da realidade brasileira

Equívocos colecionados (2004)
Obra unia o pensamento do cineasta Glauber Rocha e do dramaturgo alemão Heiner Müller

.:. Texto publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C8, em 23/7/2014.

Serviço:
Onde: Oficina Cultural Oswald de Andrade (Rua Três Rios, 363, Bom Retiro, São Paulo, tel. 11 3222-2662).
Quando: Quarta a sábado, às 19h (dias 2 e 9/8, às 16 h).
Quanto: Grátis

.:. O site da Cia. do Latão, aqui.

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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