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Crítica

Fontes vivas em cenas e narrativas ágeis

27.8.2014  |  por Fernando Marques

Foto de capa: Junior Aragão

Interessantíssimo: o monólogo Calango deu! Os causos de dona Zaninha, espetáculo carioca exibido no Teatro Funarte Plínio Marcos, em Brasília, durante o festival Cena Contemporânea, é brasileiro até a raiz dos cabelos ou das unhas, mas não guarda nem de longe o ar missionário de quem resgata ou recupera alguma coisa. Isto é, os artistas da Cia. Caititu tratam suas fontes – no caso, o interior de Minas – como coisa viva, sem nostalgia excessiva e sem o olhar vagamente superior com que os da cidade por vezes miram o campo ou, como diria dona Zaninha, a roça. Tudo respira e é deliciosamente engraçado.

A atriz Suzana Nascimento interpreta a múltipla Zaninha, figura que, de realista, conserva apenas a enganadora ingenuidade das pessoas simples. O repertório poderia limitar-se à mera coletânea de motes tradicionais: a interiorana sagaz, dona de linguagem poeticamente estropiada, a contar histórias que vêm divertindo gerações, da sedução à assombração. No entanto, transforma-se em série de cenas e narrativas ágeis, nas quais a atriz – benza Deus – não critica a personagem; não tem preconceitos contra ela. Suzana faz da figura de Zaninha a humana plataforma para comentar, com verve, o cotidiano urbano. A personagem é que se distancia de nós para observar, aguda, os nossos hábitos. A televisão que nos toma por estúpidos, por exemplo, lá está, pelo avesso.

O diretor Isaac Bernat palestrou na sexta-feira, dia 22, no Departamento de Artes Cênicas da UnB, divulgando seu livro sobre o ator, narrador e mestre malinês Kouyaté (o livro chama-se Encontros com o griot Sotigui Kouyaté). Na ocasião, ao falar sobre Calango deu!, disse que, no caso de Suzana Nascimento, atriz exuberante, o melhor que o diretor tem a fazer é “não atrapalhar”. Verdade, sim, mas parcial.

A atriz Suzana Nascimento em seu monólogo

O espetáculo comunica a espontaneidade dos eventos singulares, ímpares, mas também exibe certa disciplina no uso do espaço amplo da sala, o que faz entrever a mão do encenador. De todo modo, o cara a cara com o público, de fato, pertence à intérprete. Suzana canta e se acompanha em algumas das cenas, cita Drummond e Villa-Lobos. Brinca amorosamente com o público, sem transformar os espectadores em vítimas. Oferece café, como faria qualquer dona de casa mineira (não posso confirmar a qualidade do café, mas parece que gostaram).

Zaninha converte prosa em poesia. Belo trabalho, longamente aplaudido ao final.

.:. O site do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, que acontece de 19 a 31 de agosto, aqui.

Ficha técnica:
Direção: Isaac Bernat
Texto, direção musical e atuação: Suzana Nascimento
Direção de movimento: Marcelle Sampaio
Cenário e figurino: Desirée Bastos
Bonecos: Suzana Nascimento
Preparação musical: Pedro Amorim
Edição de som: André Poyart
Luz: Aurélio de Simoni
Operação de luz: Walace Furtado
Produção executiva: Gabriel Salabert
Direção de produção: Aline Mohamad

Professor do departamento de artes cênicas da Universidade de Brasília (UnB), na área de teoria teatral, escritor e compositor. Autor, entre outros, de ‘Zé: peça em um ato’ (adaptação do ‘Woyzeck’, de Georg Büchner); ‘Últimos: comédia musical’ (livro-CD); ‘Com os séculos nos olhos: teatro musical e político no Brasil dos anos 1960 e 1970’ e ‘A província dos diamantes: ensaios sobre teatro’. Também escreveu a comédia ‘A quatro’ (2008) e a comédia musical ‘Vivendo de brisa’ (2019), encenadas em Brasília.

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