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Crítica

Cavaleiros de triste figura

4.8.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Lucie Jansch

Despidos da máscara da representação, ainda assim os gestos e as falas não traem a qualidade da presença de palco desses corpos amadurecidos pelas artes da dança, do teatro e, tangencialmente, do cinema. Ocupando duas cadeiras no centro de um auditório do Sesc Pinheiros, numa tarde paulistana da semana passada, o letão Mikhail Baryshnikov, de 66 anos, e o americano Willem Dafoe, de 59 anos, mostram-se pacientes, conscienciosos e bem-humorados diante de jornalistas ávidos pelas razões que os movem em The old woman (A velha), em turnê latino-americana por São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires até este mês.

O espetáculo é dirigido pelo americano Robert Wilson, de 72 anos, reconhecido pela transcendência pictórica de suas obras – esta é a quinta consecutiva que ele exibe no Brasil em três anos. Desta vez o dispositivo visual vem embalado pela performance de enxadrista da dupla submetida à meticulosidade do encenador, que lança mão de dois recursos-chave, o clown e o vaudeville. São 12 quadros (mais epílogo) de espasmos corporais e verbais entremeadas por instantes de mudez e inação primas da estética do cinema em preto e branco do americano Buster Keaton (1895-1966), o comediante de olhar entristecido constantemente evocado por Bob Wilson.

Baryshnikov reconhece que o diretor o levou a caminhos até então desconhecidos em sua prática artística. “Numa das passagens do espetáculo eu canto por 30 segundos, o que é suficientemente assustador para mim e para qualquer pessoa”, afirma, em tom de brincadeira. “Minha bagagem profissional envolve uma série de linguagens com coreógrafos, diretores de cinema, de televisão, mas no fim das contas você é o que você é dentro desse todo. O Bob te faz engolir o anzol e extrair o que há de mais profundo em si. E essa não é uma imagem confortável.” Ao que Dafoe consente com ressalva: “Fico desconfortável quando estou na zona de conforto”. Coerência de quem militou por 30 anos no teatro de vanguarda do Wooster Group, em Nova York, e já se deixou dirigir três vezes pelo controvertido cineasta dinamarquês Lars von Trier, como em Anticristo (2009).

“Admito que uma das coisas mais bonitas sobre a arte do teatro é sua artificialidade. Sou escolado em teatro baseado em elementos formais. Às vezes não há nada mais bonito do que se transformar no objeto de cena, na luz ou propriamente na arquitetura que são desenhadas”, afirma Dafoe, dirigido por Wilson pela segunda vez. A primeira foi em A vida e a morte de Marina Abramovic (2011), ao lado da artista sérvia do título.

Foi Baryshnikov quem apresentou a Bob Wilson a prosa lírica e absurda do escritor e poeta russo Daniil Kharms (1905-1942), fonte da dramaturgia. “Li seus textos na infância, mas tinha pouca familiaridade com os poemas e novelas”, diz o ator e bailarino. “Bob apaixonou-se pela obra desse autor excêntrico.” E eles que se prometiam um projeto comum a cada jantar eventual em 20 anos de amizade finalmente engrenaram a coprodução de A velha, novela de 1939 adaptada pelo romancista e ensaísta americano Darryl Pinckney.

Não é difícil entender por que o diretor texano identificou-se com as transgressões formais de Daniil Kharms, da estirpe de Samuel Beckett (1906-1989) em termos de lapidação de linguagem – o próprio encenador atuou no solo A última gravação de Krapp (2009), do irlandês Nobel de Literatura, por meio do qual iniciou a recente série de incursões pelo Brasil onde se apresentou pela primeira vez em 1974 com a ópera A vida e a época de Joseph Stalin.

No fim dos anos 1920, o escritor russo era um dos idealizadores do grupo vanguardista Oberiu (Associação para uma Arte Real). Sob acusação de produzir textos refratários ao realismo socialista soviético, ele e outros colegas foram empurrados para a ilegalidade, sendo presos em 1931, havia poucos meses do suicídio do poeta Vladimir Maiakóvski (1893-1930). Ao longo daquela década, sob o regime autoritário de Stalin, Kharms resistiu concebendo escritos experimentais clandestinamente. Sua morte, em 1942, aos 36 anos, ocorreu em condições precárias de subsistência, preso num campo de concentração em Leningrado, atual São Petersburgo, quando a cidade já estava cercada por tropas nazistas alemãs. Um amigo conseguiu preservar a mala em que ele guardava os manuscritos finalmente trazidos a público a partir da década de 1960.

A peça abre com um poema sobre a fome, em cena de cortina à frente de um telão estampado com desenhos, à maneira do teatro de revista brasileiro. A estratégia da cortina como show de auditório retorna no final. É no miolo desse percurso que a fantasia cênica transborda vivamente.

Moduladas sob a figura do palhaço, ora sutil ora histrião, as atuações pulsam conforme a movimentação inscrita no espaço, determinando o tempo no interior da narrativa em pedaços. As peripécias de um escritor perturbado por bloqueio criativo e dizendo-se perseguido pelo fantasma de uma velha senhora são articuladas por atores cadenciados pelo tique-taque das ações físicas e das falas. Graças à simbiose – ambos revezam narrador e personagens – intui-se muito bem o caráter ciclotímico da escrita de Daniil Kharms, ratificando em Bob Wilson o olhar coreográfico no modo como sincroniza geometricamente os corpos e as formas animadas para projetar um terceiro plano de sentidos ao espectador.

Em nenhum momento se ostenta o aparato tecnológico com recursos audiovisuais. Há discrição no caso dos equipamentos de ponta nos desenhos de luz e de som. A estilização dos objetos cenográficos remete à holografia: eles entram, saem e voam sem a clássica manipulação humana direta. Em contraponto, a equipe de contrarregras (cerca de 15 pessoas) compõe a suspensão onírica nas transições de cena ao se fazer ver na contraluz. Penumbras elucidativas das bizarrices e dos horrores que a arte da ficção pode contar em suas línguas inventadas ao infinito.

.:. Texto publicado originalmente no jornal Valor Econômico, caderno Eu & Fim de Semana, pp. 22 e 23, em 1º/8/2014.

Serviço:
Onde: Cidade das Artes – Grande Sala (avenida das Américas, 5300, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, tel. 21 3325-0102).
Quando: De 8 a 10/8. Sexta, às 21h30; sábado, às 21h; domingo, às 18h.
Quanto: R$ 50 a R$ 350.
(A temporada em São Paulo aconteceu de 24/7 a 3/8, no Sesc Pinheiros)

Ficha técnica:
Direção, cenário, conceito de luz: Robert Wilson
Com: Mikhail Baryshnikov e Willem Dafoe
Texto: Daniil Kharms,
 adaptado por Darryl Pinckney

Música: Hal Willner

Figurinos: Jacques Reynaud

Desenho de som: Marco Olivieri.
Iluminação: A.J. Weissbard
Colaboração em cenário: Annick Lavalle-Benny
Produção executiva: Change Performing Arts
(diretores Franco Laera / Elisabetta di Mambro),
em colaboração com Baryshnikov Productions e CRT Centro RicercheTeatrali
Um projeto de Baryshnikov Productions, Change Performing Arts e The Watermill Center Comissionado e coproduzido por Manchester International Festival, Spoleto Festival dei 2Mondi, Théatre de la Ville-Paris/Festival d’Automne à Paris e DeSingel Antwerp
Realização: Sesc São Paulo

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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