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Reportagem

Frestas documental e feminina no Filo

28.8.2014  |  por Michele Rolim

Foto de capa: Milton Dória

No norte do estado do Paraná, uma cidade é guardiã do mais antigo festival de artes cênicas na América Latina. Trata-se do Festival Internacional de Teatro de Londrina, conhecido como Filo, que ocorre há 46 anos de forma ininterrupta – mais da metade da existência da cidade, que comemora 80 anos em 2014.
A 46ª edição do Filo começou na sexta-feira passada (22) e, durante 17 dias de programação, devem passar pela cidade mais de 40 espetáculos de várias vertentes das artes cênicas e da música. Ao todo, serão 91 apresentações por vários pontos da cidade, sendo que 30 delas poderão ser acompanhadas gratuitamente pelo público.

Contando com um orçamento de aproximadamente R$ 1,3 milhão, segundo o coordenador e também um dos curadores do festival, Paulo Braz, neste ano serão apresentadas montagens de oito países: Brasil, Argentina, Estados Unidos, Espanha, Grécia, Itália, França e Bélgica. Para ele, um festival deve conversar com o seu público. “O público do festival de Londrina está acostumado com uma programação diversificada que busca gerar reflexão e, até mesmo, incomodar”. O Filo segue até 7 de setembro, com ingressos a R$ 25,00 (inteira) e R$ 12,50 (meia-entrada). A direção do festival é assinada por Luiz Bertipaglia.

A abertura oficial ficou por conta do espetáculo Black Madonna, da bailarina Maureen Fleming, de 60 anos. Discípula de Kazuo Ohno, dançarino e coreógrafo japonês, considerado um mestre do teatro butô, Maureen apresentou um solo com coreografias que envolviam movimentos precisos derivados do butô, projeções e efeitos de luz, provocando uma profusão de belas imagens que, aos poucos, vão se transformando em outras.

O espetáculo cultua a figura do feminino, propondo uma imersão ao mundo espiritual. Para isso, Maureen traz como referências santas negras, culturas e religiões pelo mundo e também faz alusão à mitologia grega, na figura de Perséfone, deusa da terra e da agricultura. Em alguns momentos, a bailarina apresenta coreografias com música ao vivo, executada ao piano pelo musicista norte-americano Bruce Brubaker, que interpreta peças de Phillip Glass, Guy Klucevsek e Kaoru Watanabe.

Maureen nasceu no Japão e naturalizou-se americana. Ela sofreu um acidente de carro aos 2 anos ainda em Yokohama, sua cidade natal. Um fato curioso: um osso cresceu para preencher um espaço entre a quarta e quinta vértebra de sua coluna, não a impedindo de dançar. A artista já havia participado do Filo em 2005 com o trabalho After eros.

A bailarina Maureen Fleming em ‘Black Madonna’ (EUA)

Outro solo incrível, que promete ser um dos grandes destaques desta edição do Filo, é Conversas com meu pai, da paulistana Janaína Leite, de 32 anos [foto de cena no alto]. A atriz, em um cenário-instalação, apresenta ao público uma história sobre a relação dela e do seu pai o mais próximo possível do real, construindo um jogo com o espectador sobre o limite muito tênue entre memória e a imaginação. Portanto, não se sabe o quanto se tem de real e de ficção na encenação, mas isso pouco importa. A peça vai além da relação de pai e filha. Discorre sobre o processo de conseguir falar sobre isso e como fazê-lo. A montagem, alimentada de memórias autobiográficas, leva o espectador a sentimentos diferenciados daqueles que um espetáculo totalmente ficcional provocaria.

Para contar essa história – o que levou sete anos -, ela se baseou em escritos de seu pai, Alair Pereira Leite, que faleceu em 2011. Ele passou por uma traqueostomia e perdeu a capacidade de falar, se comunicando com a filha através de bilhetes. Por outro lado, a atriz começou a apresentar perdas da audição. Foi, então, que os dois começaram uma conversa quase silenciosa.
Além disso, foram utilizadas entrevistas, anotações pessoais e ficcionais, vídeos e áudios captados pelo cineasta Bruno Jorge – projetados durante o espetáculo, entre outras coisas, como um fato bíblico no livro de Gênesis sobre incesto e o mito de Édipo. A costura desse material ficou a cargo do dramaturgo e diretor Alexandre Dal Farra, também marido da atriz.

Quase como uma tentativa de entender o que acontece na vida real, através da arte, a atriz mergulha novamente neste gênero do documentário cênico. Em 2008, ela protagonizou a peça Festa de separação. Nela, era apresentada a ruptura da própria Janaína e seu ex-namorado, Felipe Teixeira Pinto. A atriz é conhecida por trabalhos do Grupo XIX de Teatro, como Hysteria, Hygiene (que esteve neste ano em Porto Alegre) e Arrufos.

.:. Texto publicado originalmente no Jornal do Comércio, caderno Panorama, p. 4, em 26/8/2014.

.:. O site com a programação completa do Filo, aqui.

Janaína Leite no documentário cênico solo

Jornalista e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisa em torno do tema curadoria em festivais de artes cênicas. É a repórter responsável pelo setor de artes cênicas do Jornal do Comércio, em Porto Alegre (desde 2010). Participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival internacional Porto Alegre Em Cena. É crítica e coeditora do site nacional Agora Crítica Teatral e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco). Por seu trabalho profissional e sua atuação jornalística, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Dança (2015), categoria mídia, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre (2014), e Prêmio Ari de Jornalismo, categoria reportagem cultural, da Associação Rio Grandense de Imprensa (2010, 2011, 2014).

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