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Crítica

Um íntimo mal-estar de século

24.8.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Humberto Araújo

Percorrer a obra do coletivo espanhol El Conde de Torrefiel tem a ver com mergulhar numa instalação sensorial. Sentado na arquibancada semiarena, o público nem precisa abandonar o assento – e tampouco o faz – para ser guindado pelo fluxo narrativo dessa lancinante plataforma multidisciplinar de escrituras literária, visual, sonora e coreográfica. O expediente da acumulação enverga o sujeito da contemporaneidade em seu labirinto em La chica de la agencia de viajes nos dijo que había piscina en el apartamento, projeto em que tudo é movimento, a começar pelo título.

A tentação da interpretação dos signos em convergências ou dissonâncias cai por terra a cada vez que se tenta “ler” o que esses criadores estão colocando em cena. A tônica é performativa, politizada e derrisória como a obra que se quer aberta ambiciona. O público é levado a contracenar com os jogos de armar de um espetáculo que se contrapõe a tal estatuto e radica a prosa de escritores como Roberto Bolaño, senha para o tratamento épico no turbilhão de informações em níveis universais e íntimo.

O mal-estar da mercantilização da vida e dos afetos é um fio diáfano no roteiro em torno da aventura de duas amigas (pelas atrizes Cris Celada e Tanya Beyeler) em viagem de férias a uma ilha tropical, logo, paradisíaca para as lentes turísticas. Mas aqui o isolamento é pretexto para o desassossego.

Elas não chegam a dialogar diretamente, mas mediadas por microfone, postando-se uma de frente para a outra na perpendicular do espaço cênico tomado pela cor branca, “tela” territorial preenchida pelo coro de atores incorporados após oficina, mais jatos de luz e projeções da legenda em português do texto falado em espanhol, outra camada a compor, transpor ou repor.

Se interpretar pode soar uma “muleta” para enquadramento, como sentenciou Susan Sontag, o entendimento do texto como tradução de uma tradução – nas lides de um Octavio Paz ou um Jorge Luis Borges –, então a direção e dramaturgia de Pablo Gisbert acerta em sua arquitetura porosa de “escritor” que recria leituras.

Cris Celada e coro em apoio ao El Conde de Torrefiel

Em seu amor indignado e humor corrosivo no trato da nudez e da cultura pop, La chica exprime nas entrelinhas um niilismo de fim de século 20 que parece que ainda não acabou no ciclo contínuo da nova ordem mundial da ciranda financeira e, claro, global. Há uma particular autoironia em relação ao país-berço, alfinetadas como a sem-cerimônia com que os restos mortais de Federico García Lorca são ignorados ainda hoje, e por tabela o fuzilamento do poeta na Guerra Civil Espanhola, ignorado até meses atrás em livros didáticos.

A criação cultiva esse pensamento crítico com vertigem e lucidez, o que não é pouco para um ajuntamento em seu quarto trabalho e dono de poder de sedução incomum ao ganhar a cumplicidade incondicional dos atores e atrizes locais que somaram forças e sentidos durante as apresentações do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília.

Na esteira do argentino-espanhol Rodrigo García ou ao lado da companhia La Tristura, esta uma interlocutora da mesma geração, o El Conde de Torrefiel é mais um dos expoentes da produção atual na Espanha em que as teatralidades estão entrelaçadas a outras possibilidades expressivas. Quem se agarrar ao primeiro fio de história que surge pode perder o bonde do mundo que está por vir – mesmo quando o mal absoluto faz tudo retroceder.

.:. O jornalista viajou a convite da organização do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. Texto escrito no âmbito da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.

.:. O site do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, que acontece de 19 a 31 de agosto, aqui.

.:. A obra fará duas sessões no Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto (SP), nos dias 29 e 30/8, aqui.

As espanholas Tanya Beyeler (esq.) e Cris Celada

Ficha técnica:
Ideia e criação: El Conde de Torrefiel
Dramaturgia: Pablo Gisbert
Texto: Pablo Gisbert e elenco
Com: Cris Celada, Tanya Beyeler, Mariana Miranda e atores convidados Diana Poranga, Kamala Ramers, Luara Learth, Natasha Padilha, Paulo Victor Gandra, Pedro Mesquita e Túlio Starling
Luz: Octavio Mas
Som e arranjos: Rebecca Praga
Tradução: João Lima
Voz off: Adriana Lodi
Produção: Mónica Pérez
Uma coprodução: Festival TNT, Terrassa Graner, Centro de Creación, com a colaboração de AZALA Espacio de Creación (Álava), L’Estruch de Sabadell, Graner espai de creació de Barcelona, Festival BAD de Bilbao, OSIC – Generalitat de Catalunya, Institut Ramon Llull, INAEM- Ministério de Cultura, Educación y Deportes e AECID (Agencia Española de Cooperación y Desarrollo).

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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