Crítica
O grupo chileno Teatro en el Blanco crava em La reunión o poder da retórica que enfeixa ator e voz no domínio técnico assim como, no plano das ideias, atrita história e ficção ao jogar com avatares dos processos de colonização. As figuras da rainha Isabel e do navegador Cristovão Colombo são catapultadas de cinco séculos atrás para uma arena expositiva das seduções do e pelo poder aplicáveis aos sistemas políticos de todas as épocas.
Trinidad González e Jorge Becker atuam ao redor de uma mesa igualmente circular. É para lá que arrastam a atenção máxima do espectador, o mapa-múndi de suas ambições desmedidas e expiações. Em audiência a portas fechadas no hipotético palácio, o navegador italiano tenta convencer a rainha espanhola das benesses por trás do método de dizimação dos povos originários em sua sanha de conquistar as Índias Orientais (como o continente americano era genericamente nomeado no século 15, antes das “descobertas”), justamente a mando do Império Espanhol.
Mancomunada com a igreja – daí a alcunha de “a católica” conferida pelo papa de então –, Isabel expia culpas a que Colombo não tem a menor paciência, mas sabe que só a dona da coroa poderá livrá-lo do cárcere impingido pelos monarcas diante do fracasso em administrar as terras que governou à base de escravidão e genocídio.
O texto da também diretora e atriz González é ambicioso em seus painéis histórico, social e econômico. As frases curtas e sentenciosas armam e desarmam as máscaras das autoridades cujas decisões manobraram o destino de milhões de pessoas durante a expansão marítima protagonizada por Espanha e Portugal.
O conteúdo teoricamente maçante não se apresenta assim porque a dramaturgia transita planos institucionais e íntimos, colocando os poderosos a nu, humanizando-os – não confundir com conivência, longe disso. O vinho dilata furores verbais e carnais fermentados por atuações viscerais sob medida, sem margem para o destrambelho gestual ou fonético.
As atuações de González e Becker, não é demais reforçar, são vitais para sustentar a complementaridade dos discursos. Um projeto primoroso de ator.
Igualmente seduzido pelo trabalho minimalista que alicerça veemências e nuances, o espectador é contemplado em sua inteligência pelos mecanismos de distanciamento. Não há facilitações emocionais. A esfera política é cortante em tom realista. O artifício teatral que enxuga os recursos de luz e cenografia envolve o ato numa poética seca, como nas texturas e ossaturas dos versos de João Cabral de Melo Neto.
Circulando por festivais e mostras brasileiras desde 2008, com peças como Neva e Diciembre, ambas escritas e dirigidas por Guillermo Calderón, ex-integrante do coletivo, o Teatro en el Blanco mantém graus de sofisticação em sua estrutura de câmara em que as falas engendram musicalidade, aceleramentos e refluxos. O desfecho de La reunión é atordoante pelo acercamento das entranhas da historiografia extraoficial, segundo a ótica dos “vencedores”, e pelo princípio substancial da palavra contra qualquer forma de obscurantismo.
.:. O jornalista viajou a convite do Sesc SP, organizador do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos.
.:. O site do Mirada, aqui.
Ficha técnica:
Dramaturgia e direção: Trinidad González
Com: Jorge Becker, Tomás González e Trinidad González
Música original: Tomás González
Técnicos: Camilo Castaldi e Tomás González
http://www.youtube.com/watch?v=oA5w9CBbY5k
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.