Artigo
5.9.2014 | por Valmir Santos
Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena
Duas cenas curtas balizam a identidade artística do grupo espanca! construída ao longo de sua primeira década.
Em 2004, Por Elise, título homônimo do espetáculo desdobrado no ano seguinte, surpreende e encanta pela exposição de um sistema cênico aparentemente simples ancorado em requintada elaboração das escritas de texto, de cena e de atuação. Essa rara conjunção, almejada por todo criador atilado, finca raízes sob as mãos e pensamentos de moças e rapazes que, intuímos, não pactuam de largada a ambição de revolucionar a morfologia do teatro. Antes, jogam abertamente com os rastros existenciais, as inspirações artísticas embrionárias de suas escolas livres ou formais e a sincronia de época com outros pares inclinados à pesquisa permanente na capital mineira ou alhures. Condensação estilística e moldura poética inatas fixam a inquietação como princípio.
Na outra ponta da linha do tempo, a peça curta Onde está Amarildo?, de 2013, abre flanco para a investigação do real em cena. Vem espargir crueza em termos de conteúdo e de estrutura plasmando o mal estar da sociedade diante da violência urbana e de estado, o limiar das manifestações de massa em junho orientadas pelo sentido de justiça nas diversas variantes da cidadania. O transe capturado não é só o do país, mas também o da própria constituição do espanca!, mobilizado pela saída de uma de suas forças-motriz, a atriz, dramaturga e diretora Grace Passô, enveredada por demandas pessoais e profissionais apesar de ter lugar cativo nos elencos dos quais participou, na medida das possibilidades das agendas.
Prospecções sociais, políticas e biográficas à parte, ou melhor, entranhadas, a linguagem jamais resulta obliterada em Onde está Amarildo?. Tortura e desaparecimento como motes de enredo, personagens de contornos realistas misturados a figuras fantasmais e armários de aço como móbiles cenográficos catalisam as infiltrações ficcionais dessa síntese indignada e alegórica.
A Mostra que neste segundo semestre de 2014 aporta quatro espetáculos do grupo evidencia as bases desse percurso. Por Elise, óbvio, por embrião e assentamento do projeto artístico. Amores surdos, de 2006, montagem assinada por Rita Clemente, pelo tônus que redimensiona a extraordinária fruição da obra seminal. Reflexo de encontro feliz e parturiente, por assim dizer, com uma encenadora ousada e condizente para alicerçar a natureza febril de Gustavo Bones, Marcelo Castro, Paulo Azevedo, Samira Ávila e Passô, a mesma formação original de Por Elise (ambos os espetáculos incorporam atores substitutos nos últimos anos).
O líquido tátil, de 2012, reúne os cofundadores Bones, Castro e Passô em novo mergulho sem rede: intercâmbio com Daniel Veronese, o argentino autor do texto e convidado a dirigir o grupo de Belo Horizonte do qual provavelmente nunca ouvira falar. A reciprocidade de risco faz com que Veronese, ícone do teatro de pesquisa portenho, um dos responsáveis pelo lendário conjunto El Periférico de Objetos, recebesse o trio de atores em seu estúdio, em Buenos Aires, bem como se permitisse conhecer a cidade dos brasileiros que abraçaram sua peça de 1997.
Suspeitamos o quão Veronese teria ficado boquiaberto ao saber do interesse de um grupo do país vizinho em levar à cena uma obra dos anos de 1990 que radica essencialmente as autorreferências da cultura teatral, em especial aquelas de sua Buenos Aires e, em particular, a reverência ao dramaturgo russo Anton Tchekhov (1860-1904) que sorverá como nunca nas criações da década seguinte e soa mais subliminar na metalinguagem do que seu colega italiano Luigi Pirandello (1867-1936) em Seis personagens em busca de um autor, por exemplo.
Quanto a Dente de leão, que debuta na Mostra, ainda sabemos pouco no ato destes apontamentos, a dois meses e meio da estreia. Mantém a inquietude em torno do real e espreita questões relativas à educação, mais um dos paroxismos do Brasil contemporâneo de economia emergente e de misérias latentes. A dramaturgia concebida pelo integrante do grupo Quatroloscinco – Teatro do Comum, o ator e pesquisador Assis Benevenuto (que já atuara em Amores surdos), denota afinidade geracional e obstinação pela teatralidade, premissa histórica no espanca!
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O privilégio de acompanhar a gênese e o desenvolvimento de jovens artistas nos faz pensar nos parâmetros da brevidade. A excitação das primeiras produções e a convicção das últimas compreendem um piscar de olho sereno e revolto nessa travessia. Como se os dez primeiros anos aqui celebrados equivalessem à cena curta das vidas que enredam. Dez anos curtos e curtidos.
Em tempo: 1) curiosamente, a imagem do animal no título da nova obra ecoa as “presenças” dos cães em Por Elise e O líquido tátil, além do hipopótamo em Amores surdos. Donde os instintos falam forte nos fundamentos técnicos e estéticos do grupo. 2) é preciso observar que tanto Congresso internacional do medo (2008) como Marcha para Zenturo (2010), este em inspirada parceria com o Grupo XIX de Teatro, de São Paulo, são trabalhos modelares de como o espanca! consegue medir as temperaturas sociopolíticas e comportamentais do presente sem reduzir-se à mensagem em si, estimulando o espectador à leitura cúmplice; à contrapartida da arte em levantar perguntas e não certezas.
.:. Texto escrito para o site do espanca!, a pedido do grupo, publicado em 26/8/2014, aqui.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.